Estamos no coração das trevas?
É o que sugeriu o assessor de imprensa da delegação dos Estados Unidos nos Jogos Pan-Americanos do Rio, Kevin Neuendorf, ao escrever no quadro de sua sala no Riocentro, antes de uma entrevista coletiva: “Bem-vindos ao Congo!” Depois, desculpou-se, alegando que era "por causa do calor". Mas é claro que não era só isso.
Kevin já voltou para casa, para alívio seu e do Comitê Olímpico dos EUA, que pediu desculpas oficialmente ao povo brasileiro, ao prefeito César Maia e ao Comitê Organizador dos Jogos do Rio (CO-Rio).
“O Haiti é aqui”, diz o verso de Caetano Veloso, numa referência à miséria das favelas brasileiras, que lembra o país mais pobre da América. Mas o Congo?
Não sei o que aconteceu com o porta-voz americano para ficar tão ofendido. Mas comparar o Brasil com o Congo foi claramente um insulto. Esse país acaba de passar pela chamada Primeira Guerra Mundial Africana, em que exércitos de seis países e pelo menos nove grupos irregulares importantes lutaram pelo poder por quase 10 anos, matando um total estimado em até 4 milhões de pessoas.
A atual República Democrática do Congo (ex-Congo Belga e ex-Zaire) é um imenso país situado no coração da África, com 2,345 milhões de quilômetros quadrados, cerca de 60 milhões, enormes recursos naturais e uma História trágica.
O domínio colonial belga foi cruel. O rei Leopoldo II, que governou a Bélgica de 1865 a 1909, criou em 1885 o Estado Livre do Congo e administrou-o como uma empresa privada sua, usando escravos para extrair riquezas como marfim, borracha e cobre, até 1908. Naquele período, o total de congoleses mortos é estimado entre cinco e 22 milhões.
Hoje Leopoldo II é considerado um dos grandes genocidas da História. É na sua época que se passa a história de No Coração das Trevas, livro do escritor Joseph Conrad que inspirou Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, talvez o melhor filme sobre a Guerra do Vietnã.
Mr. Kurtz, personagem de Conrad, era um gerente da exploração colonial que criou seu próprio feudo no meio da anarquia, tornando-se um tirano temido e um semideus para as tribos que o cercavam.
Coppola o rebatizou de Coronel Kurtz e o colocou numa aldeia do Vietnã. Conrad inspirou também a jornalista inglesa Michaela Wrong, autora de Nos Passos do Sr. Kurtz: vivendo à beira do desastre no Congo de Mobutu.
Rico em urânio, o Congo Belga (1908-60) forneceu minério para a carga das bombas nucleares de Hiroxima e Nagasaque.
No processo de independência, em maio de 1960, foi eleito primeiro-ministro Patrice Lumumba, do Movimento Nacional Congolês, um dos heróis das lutas de libertação nacional do século 20.
Em 30 de julho de 1960, a República do Congo se tornou independente. A província de Katanga tentou se separar, deflagrando uma guerra civil. O ex-sargento do Exército colonial belga Joseph Mobutu, nomeado por Lumumba para comandar o Exército Nacional Congolês, articulou, com o apoio dos EUA e da Bélgica, sua ascensão ao poder.
O golpe de Mobutu, apoiado pelos EUA, para derrubar Lumumba viria em 14 de setembro de 1960. Quatro dias depois, o secretário-geral das Nações Unidas Dag Hammarskjöld morreu num acidente de avião suspeito. Na guerra civil congolesa, pela primeira vez tropas da ONU deram tiros e tomaram posição num conflito armado.
Lumumba foi preso em 1º de dezembro de 1960 e assassinado em 17 de janeiro de 1961, em operações coordenadas pela CIA (Agência Central de Inteligência), o serviço de espionagem do governo dos EUA, como está comprovado por documentos desclassificados no mês passado.
Mobutu exerceu o poder absoluto com o apoio do Ocidente durante a Guerra Fria, acumulando uma fortuna pessoal estimada em US$ 4 a 6 bilhões em meio à miséria da maioria da população. Quando caiu, médicos e professores ganhavam salários mensais de um dólares e estavam sem receber há seis meses. O país vivia uma epidemia do vírus ebola.
Com o fim da Guerra Fria, Mobutu perdeu sua utilidade. Tornou-se apenas mais um diatador. Mas o que desestabilizou o Zaire, nome que Mobutu adotou em 1971, foi a fuga de centenas de milhares de ruandeses e da milícia hutu que promoveu o genocídio de 1994, quando 800 mil a 1 milhão de pessoas foram mortas.
O novo regime dominado pela minoria tútsi em Ruanda, liderado pelo general Paul Kagame, da Frente Patriótica Ruandesa, passou então a apoiar os baniamulengue do Congo, que são da mesma etnia tútsi, para evitar que a milícia dos Interahamwe se reorganizasse para contra-atacar Ruanda.
Isso tudo encorajou Laurent Kabila, ex-companheiro de lutas de Che Guevara, quando o revolucionário argentino passou um ano na África lutando pelo legado de Patrice Lumumba. No seu Diário do Congo, Guevara chamou Kabila de “bêbado” e “mulherengo”, dizendo ser impossível fazer uma revolução com um cara daqueles.
Mas foi Kabila que, saindo das Montanhas de Lua, no centro da África, em 1996, marchou em direção a Kinshasa e acabou com a ditadura de Mobutu, em 1997. Só que a guerra não parou.
Seis exércitos nacionais – de Angola, Namíbia, Ruanda, Uganda, Zimbábue e do próprio Congo – lutaram na guerra civil congolesa, além de diversos grupos irregulares, o que só aumentou o caos no país. Cada grupo tentava controlar uma pedaço do país para pilhar seus abundantes recursos naturais.
Kabila foi assassinado em 2001 e substituído por seu filho Joseph Kabila, que iniciou negociações que levaram a um acordo de paz assinado na África do Sul no final de 2002. O total estimado de mortos na Primeira Guerra Mundial Africana é de 2,5 a 4 milhões.
Em 30 de junho de 2006, o país realizou suas primeiras eleições pluripartidárias desde 1960. No segundo turno, em 29 de outubro, o presidente Kabila derrotou seu vice, Jean-Pierre Bemba, que rejeitou o resultado das urnas criando um clima pré-guerra civil. Mas ele pediu trégua a seus partidários e estaria disposto a assumir o papel de líder da oposição.
Por tudo isso, comparar o Brasil com o Congo é um pouco demais, não, Mr. Neuendorf?
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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