Ao decidir que o banco central alemão (Bundesbank) não deve seguir a determinação da presidente do Banco Central Europeu (BCE) de comprar tantos títulos de divida pública de países da Zona do Euro quanto for necessário para sustentar a economia em tempos de pandemia, o Tribunal Constitucional da Alemanha ameaça o projeto de integração da Europa.
Em 1963, uma sentença da Corte Europeia de Justiça estabeleceu que a legislação europeia tem precedência sobre as leis nacionais. Ao contrariar esta decisão, o tribunal de Karlsruhe ameaça derrubar um dos pilares da União Europeia, que nasceu em 1958 como Comunidade Econômica Europeia, criada pelo Tratado de Roma, de 1957.
A Polônia, um dos países que mais se beneficiou da integração à UE depois da queda dos regimes comunistas na Europa Oriental, tem hoje um governo extremista de direita que mina a independência do Poder Judiciario. Aplaudiu a posição do Tribunal Constitucional da Alemanha.
Se outros países fizerem o mesmo em meio a uma emergência de saúde pública e uma crise econômica como não se vê desde a Grande Depressão (1929-39), todo o projeto construído no pós-guerra para garantir a paz e a prosperidade na Europa corre o risco de desabar.
Em entrevista ao jornal francês Libération, o franco-alemão Daniel Cohn-Bendit, Dani Le Rouge, líder da Revolução dos Estudantes de maio de 1968, hoje um deputado da bancada verde do Parlamento Europeu, declarou que, "se a Europa desabar, será um suicídio alemão." O primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, já advertiu que a falta de solidariedade nesta hora será um golpe fatal na UE.
Maior economia do continente e quarta do mundo, a Alemanha é o país que mais se beneficia do mercado único europeu. Ao reafirmar a primazia das leis nacionais, o tribunal coloca em risco a reconstrução econômica da Europa depois da pandemia.
A Itália e a Espanha, os países da UE mais abalados pelo novo coronavírus, pediram a demissão de um bônus pan-europeu para o financiamento conjunto da retomada do crescimento. Como aconteceu na Crise do Euro, depois da Grande Recessão, quando Grécia, Espanha, Portugal e Irlanda não conseguiram honrar suas dívidas, países ricos do Norte da Europa, como a Alemanha, a Finlândia e a Holanda, se negaram a mutualizar a dívida.
Nessa crise anterior, com o veto à emissão de bônus pan-europeus, o então presidente do BCE, o italiano Mario Draghi, prometeu em 2015 comprar tantos títulos de dívida pública dos países da Eurozona quantos fossem necessários para sustentar as economias endividadas e a união monetária europeia.
Agora, a nova presidente do BCE, Christine Lagarde, ex-ministra das Finanças da França e ex-diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), tomou a mesma decisão e promete mantê-la apesar da decisão da Justiça alemã. Mas os ministros do tribunal de Karlsruhe vetaram a participação do Bundesbank.
Mais uma vez, a solidariedade econômica e financeira é fundamental para manter em pé o projeto de integração da Europa, ameaçado pelo ultranacionalismo de extrema direita dos governos periféricos da Hungria e da Polônia e de partidos como a Reunião Nacional, na França, a Liga, na Itália, a Alternativa para a Alemanha e a pequena Vox, na Espanha.
Se a Alemanha se recusar a contribuir para superar o impacto econômico do Grande Confinamento, as consequências serão terríveis. No início do ano, a Comissão Europeia esperava um crescimento de 1,1% para a Eurozona em 2020. Com a pandemia, a expectativa é de uma recessão de 7,4% na UE e de 7,75% na Europa. O BCE admite que possa chegar a uma queda de 12%.
O risco é que os países do Sul da Europa, a Grécia, a Itália e a Espanha, que devem perder perto de 10% do produto interno bruto, e também Portugal e até a França não consigam arcar com as despesas de reconstrução, aprofundando o fosso com os países do Norte.
A união monetária e o mercado único, que pressupõem uma convergência econômica, sofreriam um golpe potencialmente fatal. A França e uma dezena de países propuseram criar um fundo de recuperação de um a um trilhão e meio de euros com um grande empréstimo tomado pela Comissão Europeia com o aval dos 27 países-membros da UE. Isto permitiria obter taxas de juros muito inferiores às que seriam cobradas dos países em maiores dificuldades.
Diante desta bomba jurídica, a chanceler (primeira-ministra) alemã, Angela Merkel, está entre o dilema de enfrentar a "bomba jurídica" dos juízes de Karlsruhe, o que deflagaria uma crise política e institucional na Alemanha, ou recusar a solidariedade. Nesta hipótese, o sonho de uma Europa unida pode virar pesadelo e fragmentar o continente.
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