domingo, 22 de outubro de 2023

Massa e Milei vão disputar segundo turno na Argentina

Apesar da inflação de 138% ao ano, o ministro da Economia, Sergio Massa, da Aliança União pela Pátria, surpreendeu. Com mais de 98,5% dos votos apurados, ele ficou em primeiro lugar no primeiro turno da eleição presidencial na Argentina com 36,7% dos votos. Massa vai disputar o segundo turno em 19 de novembro com o economista Javier Milei, do partido Liberdade Avança, de extrema direita, que teve 30% dos votos.


O sucesso de Massa se deve ao bom desempenho do peronismo na Província de Buenos Aires, onde o governador Axel Kicillof, ex-ministro da Economia no Governo Cristina Kirchner (2007-15), se reelegeu no primeiro turno. Milei repetiu a votação das eleições primárias abertas simultâneas e obrigatórias realizadas em 13 de agosto. 

A participação foi de 74% dos 35 milhões de argentinos aptos a votar numa população de 46 milhões, menos do que nas duas eleições presidenciais anteriores, em 2015 e 2019.

Em seu discurso, primeiro ato da campanha para o segundo turno, Milei tentou de atrair os votos da terceira colocada, Patricia Bullrich (24%), da aliança Juntos pela Mudança, que tem entre seus principais líderes o ex-presidente Mauricio Macri (2015-19).

"Dois terços dos argentinos votaram pela mudança", afirmou o segundo colocado, que sonhava em vencer no primeiro turno. Num apelo aos eleitores de Bullrich, Milei declarou que "aqueles que querem a mudança devem trabalhar juntos" e atacou o kirchnerismo como "a pior coisa que já aconteceu com a Argentina."

Massa não é kirchnerista. Foi chefe de gabinete do primeiro governo Cristina Kirchner (2007-11) durante um ano (2008-9) e voltou a ser prefeito de Tigre (2009-13), uma cidade da Grande Buenos Aires. 

Em 2010, em documentos do Departamento de Estado norte-americano vazados pelo WikiLeaks, Massa diz à embaixadora dos Estados Unidos, Vilma Martinez, que Néstor Kirchner (2003-7) "é um psicopata" e "comanda o governo argentino" enquanto sua mulher "cumpria as ordens".

Ele rompeu com o kirchnerismo em 2013 e fundou seu próprio partido, a Frente Renovadora, uma dissidência peronista em relação ao kirchnerismo. Na Câmara dos Deputados, lutou contra o projeto que permitiria a Cristina ter um terceiro mandato consecutivo

Em 2015, Massa disputou a Presidência e ficou em terceiro lugar, com 21%, atrás do então vice-presidente Daniel Scioli, candidato do kirchnerismo, e de Mauricio Macri, que foi o vencedor no segundo turno.

Na eleição de 2019, Massa abriu mão de sua candidatura para apoiar Alberto Fernández, indicado numa jogada de mestra de Cristina, que ficou como vice-presidente para que a rejeição contra ela não prejudicasse a chapa peronista. Há uma piada que comenta que a Argentina é um país tão original que inventou o vice-presidencialismo. A vice mandava. Massa foi eleito deputado nacional e se tornou presidente da Câmara.

Diante do fracasso total do Governo Fernández (2019-23), com a aceleração da inflação e o aumento da pobreza, Cristina Kirchner deu mais uma tacada de mestra: em julho de 2022, indicou Massa para o Ministério da Economia como última esperança do peronismo, na expectativa de que ele ganharia popularidade se conseguisse frear a alta de preços.

Mesmo sem conseguir, Massa venceu o primeiro turno com uma campanha em que se apresenta como totalmente independente do governo a que pertence. Alberto Fernández e Cristina Kirchner foram totalmente marginalizados na campanha. Mas a força do peronismo, não.

O movimento peronista nasce em outubro de 1945, quando o então ministro do Trabalho e vice-presidente, coronel Juan Domingo Perón, é deposto e preso sob pressão do embaixador dos Estados Unidos e volta nos braços do povo nove dias depois, em 17 de outubro, Dia da Lealdade peronista. Desde então, o Partido Justicialista ganhou 10 eleições presidenciais e governou o país por 40 anos.

Para tirar o país da profunda crise econômica e atrair o apoio do empresariado, Massa promete fazer um governo de união nacional, que só pode ser com a direita tradicional representada pelo macrismo. Ele tem bom relacionamento com o governo dos EUA e o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Sua candidata, Patricia Bullrich, ministra da Segurança no Governo Macri, recebeu os votos da elite argentina e ganhou na Cidade de Buenos Aires com 41%. No discurso da derrota, rejeitou qualquer aliança: "O populismo empobreceu o país e não sou eu que vou felicitar a volta ao poder do pior governo da história argentina."

Milei, um populista de extrema direita que se apresenta como "libertário" e "anarcocapitalista". Acusa os políticos profissionais de formar uma casta que parasita os cofres públicos. É mais um político que faz o discurso da antipolítica. É comparado ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Fez campanha com uma motossera para sinalizar a intenção de reduzir o tamanho do Estado, que culpa pela inflação argentina.

Seu guru intelectual, Alberto Benegas, causou indignação ao sugerir que um Governo Milei poderia romper com o Vaticano porque o papa Francisco tem tendências esquerdistas. Antes desse comentário, o papa havia criticado Milei sem citar o nome, dizendo que só quem faz milagres é Deus. Milei falou em romper com a China, a maior parceira comercial da Argentina.

Entre outras propostas extravagantes, Milei promete dolarizar a economia, cortar impostos, diminuir os gastos públicos, acabar com o Banco Central e com 10 ministérios, inclusive da saúde, da educação e do desenvolvimento social, que seriam fundidos no Ministério do Capital Humano, privatizar as empresas estatais e permitir a venda de órgãos humanos para transplante. É contra o Mercosul. Alega que comércio exterior é uma atividade do setor privado em que o governo não deve interferir.

Com produto interno bruto estimado pelo FMI em US$ 622 bilhões em 2024, a Argentina é segunda maior economia da América do Sul, a 24ª do mundo e a terceira maior parceira comercial do Brasil. Em renda média por pessoa, com US$ 13,3 mil por ano, está em 66º lugar no mundo e em 5º na América Latina, atrás de Uruguai, Chile, Costa Rica e México. Chegou a ter 15 cotações diferentes para o dólar, a moeda preferida pelos argentinos para poupar. 

Quando Fernández assumiu, em 10 de dezembro de 2019, o dólar oficial estava em 60 pesos. Hoje o câmbio oficial está em 365,50 pesos e no mercado paralelo a 900. Chegou a mil depois que Milei comparou o peso argentino a excremento.

A dolarização anterior, no Governo Carlos Menem (1989-99), para vencer a hiperinflação legada pelo Governo Raúl Alfonsín (1983-89), entrou em colapso no Governo Fernando De la Rúa (1999-2001), que renunciou em meio a protestos violentos com 39 mortes. 

A Argentina não fabrica dólares e as reservas cambiais são baixíssimas. No Governo Menem, a inflação argentina subiu 45% num período em que a norte-americana foi de 6%, tornando os produtos argentinos mais caros e menos competitivos.

Outra dificuldade para Milei é a base parlamentar pequena. Seu partido elegeu 38 dos 257 deputados nacionais da Câmara e terá apenas 8 dos 72 senadores.

Assim, diante da loucura do plano de governo de Milei, é provável que Massa consiga atrair o apoio do empresariado. Nas camadas populares, num país com 40% na pobreza em que uma em cada três crianças passa fome, apesar de ter capacidade de produzir comida para 350 milhões de pessoas, a campanha peronista apela para o discurso do medo. 

Se Milei for eleito, vai cortar programas sociais. Com tanta miséria, no momento, isto é inviável e pode causar uma convulsão social ou no mínimo uma onda de greves convocadas pelo movimento sindical peronista.

Nenhum comentário: