Sob pressão do Congresso, de empresários, diplomatas e militares, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ligado ao setor mais extremista do bolsonarismo, pediu demissão hoje depois de uma passagem desastrosa pelo Itamaraty. Deve ficar no cargo até o presidente Jair Bolsonaro anunciar um substituto.
Forte candidato a pior chanceler da história, Araújo hostilizou a China, maior parceira comercial do Brasil, os Estados Unidos de Joe Biden, países europeus, organizações internacionais, colegas e ex-ministros do Itamaraty. Chegou a orgulhar de transformar o Brasil num pária internacional.
O país nunca esteve tão isolado internacionalmente. Isto dificultou até mesmo a compra de vacinas para combater a pandemia do coronavírus de 2019, selando seu destino depois de embates com o Congresso.
Ontem, Araújo acusou a senadora Katia Abreu, presidente da Comissão de Relações Exteriores, de lhe pedir para dar um aceno à companhia de telecomunicações chinesa Huawei, interessada em participar do leilão para a implantação no país da tecnologia de comunicação móvel de quinta geração (5G). Ex-presidente da Federação Nacional de Agricultura, a senadora se preocupa com a deterioração das relações com a China, principal importadora de produtos agrícolas brasileiros.
Foi a gota d'água. No dia 22 de março, os presidentes da Câmara, deputado Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, se reuniram em São Paulo com empresários que fizeram duras críticas ao chanceler. Havia no Congresso articulações para iniciar um processo de impeachment do ministro ou de bloquear nomeações de embaixadores para forçar sua queda.
Ernesto Henrique Fraga Araújo era um diplomata obscuro recém-nomeado embaixador quando foi promovido a ministro por elogiar o pensamento extremista do astrólogo Olavo de Carvalho, o guru do bolsonarismo, com o apoio do assessor internacional do Palácio do Planalto, Filipe Martins, que era um obscuro professor e parecia mandar mais do que o chanceler, e do deputado Eduardo Bolsonaro, terceiro filho do presidente. O comentário nos corredores do Itamaraty era que o país tinha três chanceleres: Ernesto, Filipe e Eduardo.
Como em ocasiões anteriores, as relações exteriores foram usadas para afirmar as posições ideológicas do governo. Apesar de ter elogiado o governo Dilma Rousseff no passado, Araújo adotou o discurso antiglobalista, contra as organizações internacional e o sistema multilateral, parte da ordem internacional liberal criada pelos EUA depois da Segunda Guerra Mundial.
No discurso de posse, fez citações em tupi-guarani, grego e da Bíblia, e disse que era hora de ler mais José de Alencar e Gonçalves e menos publicações internacionais como o jornal The New York Times e a revista Foreign Affairs, "escutar menos a CNN e mais Raul Seixas".
ISOLAMENTO INTERNACIONAL
Desde o início da gestão, Araújo hostilizou a China. Ao falar para jovens diplomatas em março de 2019, declarou que a política externa não poderia se subordinar a questões comerciais: "Queremos vender soja e minério de ferro, mas não nossa alma", argumentando que o Brasil precisa se proteger da crescente influência internacional do regime comunista chinês.
Diante do seu próprio fracasso no combate à covid-19, o governo Bolsonaro se alinhou ao então presidente americano Donald Trump, responsabilizando a China pela pandemia causada pelo "vírus chinês". Quando o deputado Bolsonaro discutiu no Twitter com o embaixador chinês, defendeu o filho do presidente e chegou a pedir o mudança do representante chinês no Brasil. Foi ignorado.
A ruptura do diálogo com a missão chinesa dificultou a importação da vacina chinesa CoronaVac e dos insumos necessários à fabricação de vacinas no Brasil. De acordo com o jornal The New York Times, um emissário brasileiro fez um apelo à Huawei para romper o impasse.
Ao adotar uma política de alinhamento automático com o governo Trump, o Itamaraty de Araújo fez várias concessões aos EUA, como renunciar ao status de país em desenvolvimento, sem qualquer contrapartida. Também levantou dúvidas sobre a vitória de Joe Biden, citando as falsas denúncias de fraude de Trump e manifestou simpatia com os extremistas de direita que atacaram o Capitólio, sede do Congresso dos EUA, para tentar impedir a certificação do resultado da eleição presidencial de novembro do ano passado.
O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano, Robert Menendez, reagiu com dureza, exigindo que Bolsonaro e Araújo condenassem energicamente a insurreição de 6 de janeiro.
Nas Nações Unidas, o Brasil mudou posições históricas. Apoiou Israel no conflito com os palestinos e o embargo dos EUA a Cuba. Alinhou-se a governos de extrema direita como os da Hungria e da Polônia, e a países muçulmanos para condenar o aborto e a homossexualidade.
Os três nomes mais cotados para ministro das Relações Exteriores são o embaixador na França, Luís Fernando Serra, um bolsonarista radical que escreve cartas à imprensa francesa reclamando do noticiário sobre o governo Bolsonaro, que cortou vários programas culturais; a consulesa-geral do Brasil em Nova York, Maria Farani Azevêdo, prejudicada por ter sido chefe de gabinete do chanceler Celso Amorim no governo Lula; e o secretário de Assuntos Estratégicos, almirante Flávio Rocha, que abriria a vaga para acomodar o general Eduardo Pazuello, demitido do Ministério da Saúde.
A queda do chanceler mostra um governo acuado. Como observa Igor Gielow na Folha de São Paulo, é o maior golpe no bolsonarismo de raiz desde a demissão de Abraham Weintraub do Ministério da Educação no ano passado. O próximo alvo é o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
MINISTRO DA DEFESA TAMBÉM SAI
Mais um ministro caiu hoje, complicando ainda mais o xadrez político em Brasília. O general Fernando Azevedo e Silva não é mais o ministro da Defesa. De acordo com o cientista político Pablo Ortellado, a hipótese otimista é que "Azevedo saiu para acomodar o Centrão". A hipótese "muito pessimista" é que "a tragédia do 'herói soteropolitano' foi a senha para o golpismo que Azevedo não quis aceitar."
O "herói soteropolitano" é um policial militar da Bahia morto ontem por colegas durante um surto psicótico em que disparou vários tiros no Farol da Barra, em Salvador. Nas redes bolsonaristas, foi apresentado como alguém que resistiu às medidas de confinamento impostas pelo governador petista Rui Costa. A patética deputada Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, incitou a PM baiana a entrar em greve contra o governador.
No Globo, a colunista Bela Megale anunciou que os militares apostam que o comandante do Exército, general Edson Pujol, também sairá. Também no Globo, Malu Gaspar escreveu que Azevedo e Silva saiu para não repetir o que viveu no ano passado, quando o presidente e aliados fizeram manifestações inclusive diante do quartel-general do Exército, em Brasília.
Bolsonaro declarou na época que não iria "admitir mais interferência", que "não tem mais conversa" com o Supremo Tribunal Federal (STF) e que "as Forças Armadas estão do nosso lado". O ministro da Defesa divulgou nota afirmando que "Marinha, Exército e Aeronáutica são organismos de Estado que consideram a indepenência e a harmonia entre os poderes imprescindíveis para a governabilidade do país."
Agora, na carta de demissão, o general Azevedo e Silva repetiu o recado: "Nesse período, preservei as Forças Armadas como instituições de Estado."
As polícias militares são consideradas aliadas-chaves do presidente numa possível tentativa de golpe de Estado. O Alto Comando do Exército vai se reunir hoje para avaliar a situação.
Em meio a uma tragédia com mais de 300 mil mortes e uma crise econômica brutal, o país enfrenta uma crise política sem precedentes na história recente. O Brasil está pegando fogo às vésperas de 31 de março aniversário do golpe militar de 1964, que Bolsonaro insiste em festejar.
P.S.: Pouco depois da publicação deste texto, o governo anunciou uma reforma ministerial com seis mudanças. O próximo ministro das Relações Exteriores será o embaixador Carlos Alberto Franco França, ex-chefe do cerimonial de Bolsonaro. É próximo dos filhos do presidente e agrada aos parlamentares. Seria capaz de melhorar as relações com o Congresso.
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