O termo
fascista pode ser usado genericamente nas mais diferentes situações porque é
possível eliminar um ou mais aspectos de um regime fascista e ainda assim
caracterizá-lo como tal, afirmou o escritor e filósofo italiano Umberto
Eco (1932-2016).
Os regimes
totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial não devem
reaparecer com a mesma forma em circunstâncias históricas diferentes, entende Eco. Mas, com
as crises econômica e de refugiados, e o ressurgimento do ultranacionalismo, o
fantasma do neofascismo assombra a Europa, os Estados Unidos sob Donald Trump e
os debates políticos nas redes sociais no mundo inteiro.
“O fascismo
de Benito Mussolini era baseado no líder carismático, no
corporativismo e na ideia do ‘destino fatídico de Roma’, na vontade
imperialista de conquistar novas terras, no nacionalismo inflamatório, no ideal
de uma nação inteira de camisas-pretas mobilizados, na rejeição da democracia parlamentar
e no antissemitismo”, descreveu o pensador italiano.
Em Cinco Escritos Morais, publicado no
Brasil em 2002, Eco considera os partidos sucessores do fascismo na Itália
muito diferentes do Fascismo original: “Admito que a Aliança Nacional, que
surgiu do Movimento Social Italiano (MSI), é um partido de direita, mas tem pouco
a ver com o velho Fascismo”, comparou o intelectual.
“Da mesma
forma, muito embora eu esteja preocupado com os vários movimentos pró-nazistas
ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o Nazismo, em
sua forma original, esteja para reaparecer como um movimento envolvendo uma nação
inteira”, observa o escritor, autor de clássicos como O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault.
Esses
regimes desapareceram com a derrota na Segunda Guerra Mundial. Suas ideologias foram "criticadas e deslegitimadas”. Mas “atrás de um regime e sua ideologia, há uma
maneira de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos
obscuros e impulsos insondáveis”.
O escritor
romeno Eugène Ionescu, mestre do teatro do absurdo, dizia que só as palavras
contam e o resto é conversa fiada. “Os hábitos linguísticos com frequência são
sintomas de sentimentos não expressados”, ponderou o autor.
Eco foi
educado na Juventude Fascista. Conheceu o fascismo antes da liberdade. Aos dez
anos, em 1942, ganhou um prêmio por escrever uma redação sob o tema Devemos Morrer pela Glória de Mussolini e o
Destino Imortal da Itália? Sua resposta foi sim, em estilo exaltação.
No ano
seguinte, ele descobriu o sentido da palavra liberdade. O regime fascista caiu
em 1943, mas foi restaurado pelos nazistas. “Passei dois anos da minha juventude
cercado pelas tropas de elite nazistas das SS, por fascistas e por
guerrilheiros da resistência atirando uns nos outros - e aprendi a evitar as
balas.”
A vitória
na Segunda Guerra Mundial foi definida pelo presidente americano, Franklin
Delano Roosevelt, como a derrota do Fascismo e do totalitarismo que encarnava.
Na opinião
de Eco, o livro de Hitler “Mein Kampf
(Minha Luta) é um manifesto completo
e um programa político. O Nazismo tinha uma teoria da raça e do arianismo, uma noção
precisa de arte degenerada, uma
filosofia da vontade de poder e do Super-Homem.
“O Nazismo
era decididamente anticristão e neopagão, assim como o materialismo dialético
de Stalin (a ideologia oficial do marxismo soviético) era claramente materialista
e ateísta”, acrescentou o pensador.
“Mussolini não
tinha filosofia: tudo o que tinha era retórica. Começou como um militante ateísta
para depois fazer um acordo com a Igreja e um consórcio com os bispos que
benziam bandeiras nazistas", recordou. “O fascismo
italiano foi a primeira ditadura de direita a dominar um país europeu, o
primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até um estilo de vestuário.”
Além da Itália
e da Alemanha, nos anos 1930s o movimento fascista chegou a Inglaterra, Estônia,
Lituânia, Letônia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia,
Portugal, Espanha, Noruega e à America Latina. O fascismo prometeu mudanças
sociais capazes de neutralizar a ameaça comunista.
“O fascismo
não tem quintessência, não tem mesmo uma simples essência. É uma forma de
totalitarismo difusa. Não é uma ideologia monolítica, mas mais uma colagem de
diversas ideias políticas e filosóficas, um emaranhado de contradições”,
argumentou Eco.
“É possível
conceber um movimento totalitário que consiga reconciliar monarquia e revolução,
o Exército Real e a milícia privada de Mussolini, os privilégios concedidos à
Igreja e um sistema estatal de educação que exaltava a violência, o controle
total e o livre mercado?”, pergunta o
filósofo. E arremata: “O Partido Fascista nasceu proclamando uma nova ordem
revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores”, temerosos do comunismo.
Na Itália,
até uma corrente artística de vanguarda, o futurismo, apoiou o Fascismo e seu culto da
juventude. “Isso não significa que o Fascismo italiano fosse tolerante”,
ressalva Umberto Eco. O filósofo e intelectual comunista Antonio “Gramsci ficou
na prisão até sua morte”. O deputado socialista Giacomo “Matteotti e os irmãos Rosselli
foram assassinados, a imprensa livre suprimida, os sindicatos dissolvidos e os
presos políticos confinados em ilhas distantes.”
Apesar
desta confusão, Eco considera possível fazer uma lista das características do
que chama de “fascismo eterno”. Muitas são exclusivas, outras são típicas de outras
formas de despotismo e fanatismo.
1. A primeira característica do
fascismo eterno é o culto da tradição. O tradicionalismo é anterior ao
fascismo. Foi típico na reação do catolicismo à Revolução Francesa. A verdade já
foi divulgada de uma vez por todas. Só cabe aos homens reinterpretar sua
mensagem obscura.
2. O tradicionalismo implica a rejeição ao modernismo. Tanto Nazistas quanto Fascistas cultuavam a tecnologia, mas o
Nazismo é baseado em “sangue e solo”. O Iluminismo e a Idade da Razão eram vistos como a origem da depravação do mundo moderno.
3. A irracionalidade leva ao culto da ação
pela ação. A ação é bonita em si mesma. Deve ser implementada antes de qualquer
reflexão. O pensamento emascula. A cultura é suspeita. “Quando ouço falar em
cultura, puxo meu revólver”, diz uma frase atribuída ao ministro da Propaganda
nazista, Joseph Goebbels. Outras expressões derrogatórias são “malditos
intelectuais”, “cabeças de ovo”, “radicais esnobes”, “as universidades são um
antro de comunistas”. A suspeição sobre a vida intelectual sempre foi um
sintoma do fascismo eterno. Os intelectuais oficiais fascistas acusavam a
cultura moderna e a intelligentsia
liberal de abandonar os valores tradicionais.
4. Nenhum autoritarismo pode
aceitar a crítica. O espírito crítico faz distinções, um sinal da modernidade.
Na cultura moderna, a comunidade científica vê o dissenso como uma maneira de
promover o avanço do conhecimento. Para o fascismo, o dissenso é uma traição.
5. O dissenso é acima de tudo um sinal
de diversidade. O fascismo busca um consenso explorando e exacerbando o medo
natural do diferente. Seu primeiro movimento é contra supostos invasores e
traidores da tradição. O fascismo é portanto essencialmente racista.
6. O fascismo nasceu da frustração
social e individual. Apela às classes médias frustradas, inquietas por causa de
alguma crise econômica, da humilhação política e da ameaça vinda de baixo. “Nos
nossos dias, quando os velhos proletários
se tornam pequenos burgueses, o fascismo vai encontrar audiência nesta nova
maioria.”
7. O ultranacionalismo é um elemento central do fascismo. Para quem não tem uma identidade
social, o fascismo vai dizer que único privilégio é ter nascido naquele país. Em muitos casos, a identidade
nacional é construída em oposição a um inimigo. Na raiz da psicologia do
fascismo, está a obsessão com conspirações, de preferência internacionais. Os
militantes devem se sentir como se estivessem cercados. Os judeus foram os
bodes expiatórios durante séculos. Com o terrorismo, os muçulmanos
viraram o alvo predileto dos neofascistas e, mais recentemente, os refugiados e imigrantes.
8. Os militantes devem se sentir
humilhados pela riqueza e o poder do inimigo. O inimigo é alternadamente muito
forte ou muito fraco. Eco acreditava que “os regimes fascistas estão condenados
a perder suas guerras porque são constitucionalmente incapazes de avaliar
objetivamente a força do inimigo.”
9. O fascismo não é uma luta pela vida, é
“uma vida para a luta”. A vida é uma guerra permanente. Assim, o pacifismo é
visto como uma rendição ao inimigo. Como o inimigo precisa ser derrotado, tem
de haver uma última batalha ou solução
final, o nome que os nazistas deram ao genocídio dos judeus. Depois, viria
uma época de paz e prosperidade, o que contradiz o princípio da guerra
permanente. Nenhum líder fascista foi capaz de resolver esta contradição e a
era dourada nunca chegou.
10. O elitismo é típico de todas as
ideologias reacionárias, constatou Umberto Eco. É aristocrático, o que implica
um desprezo pelos fracos. O fascismo criou um “elitismo popular”: cada indivíduo
pertence ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos
deste povo e todo cidadão pode se tornar membro do partido. Como não pode haver
patrícios sem plebeus e o poder foi conquistado à força, o poder do líder
depende da fraqueza das massas, que merecem um “dominador”, argumentou o filósofo.
Como o regime e o partido são organizados por hierarquia de inspiração militar,
cada subordinado olha de cima para baixo para seus inferiores.
11. Todos são treinados para virar heróis.
Na mitologia, os heróis são seres excepcionais. No fascismo, o heroísmo é a
norma. O culto do heroísmo leva ao culto da morte. “Viva a morte!”, como
bradavam os falangistas espanhóis liderados pelo generalíssimo Francisco Franco. A morte é a
maior recompensa para uma vida heroica.
12. Como a guerra permanente e o heroísmo
são tarefas difíceis demais, os fascistas reorientam sua vontade política para outras
questões, como o comportamento sexual. O fascista é intrinsecamente machista.
Despreza as mulheres e condena sem qualquer tolerância relações não
heterossexuais, da castidade à homossexualidade.
13. O fascismo se baseia no “populismo
quantitativo”. Numa democracia, os cidadãos têm direitos individuais, mas o
conjunto dos cidadãos organizados tem um impacto muito maior. No fascismo, os
indivíduos não têm direitos. O povo é uma entidade monolítica que expressa uma
“vontade coletiva”. Como em grandes coletividades, as opiniões divergem e não há
uma vontade comum, cabe ao líder “interpretrar” os desejos do povo, que tem uma
presença meramente teatral. Eco advertiu para o risco de “pesquisas
qualitativas de TV” e do “populismo via Internet”, em que a reação emocional de
um grupo seleto seja apresentada como a “voz do povo”. O Fascismo era contra os
“governos parlamentares corruptos”. Toda vez que se coloca em dúvida a
legitimidade do Parlamento porque não reflete mais a “voz do povo” há um viés
autoritário e antidemocrático do líder que procura o contato direto com as
massas.
14. O fascismo usa a novilíngua. A
palavra foi inventada pelo escritor britânico George Orwell no livro 1984. Era a língua oficial de uma
ditadura instalada através da televisão, que espionava as casas de todos e mudava o sentido das palavras no "duplipensar", de acordo com a vontade do supremo líder, o Grande Irmão, que inspirou o programa de TV BBB. “Todos
os textos acadêmicos fascistas e nazistas são baseados num vocabulário pobre e
numa sintaxe elementar, com o objetivo de limitar os instrumentos disponíveis
para um raciocínio crítico complexo.” A novilíngua, alertou o pensador
italiano, também está em outras linguagens, inclusive na TV.
Quando o
fascismo caiu e Mussolini foi preso, em 27 de julho de 1943, Eco começou a
descobrir que a Itália tinha vários partidos políticos e voltaram direitos
fundamentais: as liberdades de expressão, de imprensa e de associação para fins
pacíficos. A Alemanha ainda tirou Mussolini da prisão e instalou um regime-fantoche sob o comando do Duce, a República Social Italiana, em áreas sob o controle nazista no Norte da Itália. Mas a liberdade estava a caminho.
“Renasci como um homem livre ocidental”, lembrava Umberto Eco. Mas, advertiu, “o fascismo eterno ainda ronda, às vezes em trajes civis” e “pode voltar sob os mais inocentes disfarces”. “Não podemos esquecer.”
“Renasci como um homem livre ocidental”, lembrava Umberto Eco. Mas, advertiu, “o fascismo eterno ainda ronda, às vezes em trajes civis” e “pode voltar sob os mais inocentes disfarces”. “Não podemos esquecer.”
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