O ex-presidente da Néstor Kirchner morreu de um ataque do coração aos 60 anos na cidade de El Calafate, no Sul da Argentina, informou agora há pouco a televisão estatal do país.
Desde o início do ano, ele tinha sido submetido a duas cirurgias para resolver problemas cardíacos. Em fevereiro, passara por uma operação de emergência na artéria carótida direita; em outubro, fez outra, para desobstruir a artéria coronariana.
Kirchner, descendente de imigrantes suíços e croatas, nasceu e iniciou sua carreira política em Río Gallegos, na Patagônia, onde será enterrado no sábado. Foi eleito presidente em 2003, depois do colapso da economia da Argentina, em 2001, com o fim da paridade cambial fixa entre o peso e o dólar, em plena moratória da dívida.
Em meio ao caos criado pelo calote da dívida e o confisco das poupanças em dólares, com 58% da população de um país rico na miséria, o governo Kirchner renegociou a dívida com deságio de 25%. Revogou as leis que anistiavam as violações de direitos humanos da última ditadura militar argentina, e adotou políticas sociais destinadas a varrer o neoliberalismo da era Carlos Menem (1989-99), o peronista de direita responsável pela dolarização catastrófica.
Na verdade, Kirchner foi tirado da cartola pelo então presidente Eduardo Duhalde (2002-03) como candidato anti-Menem. Neste jogo de paixões e traições da política argentina, Duhalde foi vice-presidente no primeiro governo Menem, mas depois rompeu com ele.
Com o apoio da ala mais esquerdista do Partido Justicialista (peronista), Duhalde concorreu à Presidência em 1999 e perdeu para Fernando de la Rúa, da União Cívica Radical. Sem os votos que a direita dava a Menem, não superou o limite de 40% da votação tradicional peronista.
De la Rúa cometeu o erro fatal de não abandonar a dolarização de Menem. O capital estrangeiro não fluía mais para a América Latina desde a crise asiática de 1997. Com a camisa de força da dolarização, a economia argentina perdia competitividade. A situação piorou com as crise da Rússia (1998) e do Brasil (1999).
Em abril de 2001, o ministro da Economia, Domingo Cavallo, anuncia o lançamento de títulos que pagavam 15% em dólar. No fim do ano, a Argentina entrou em colapso, pagou de parar a dívida e viveu uma das piores crises econômicas da História.
Com a multidão nas ruas de Buenos Aires e corrida aos bancos para sacar os depósitos em dólares, De la Rúa caiu, em 21 de dezembro de 2001.
Duhalde chegou ao poder em 2 de janeiro de 2002, depois de três presidentes interinos: o presidente interino do Senado, Frederico Ramón Puerta; o governador Adolfo Rodríguez Saá; e o presidente da Câmara, Eduardo Camaño.
Seus objetivos maiores eram reestabilizar a economia, combater as consequências sociais da crise e afastar de vez o neoliberalismo menemista, que Duhalde via como responsável pelo colapso da Argentina.
Kirchner foi o candidato da esquerda peronista, o anti-Menem na eleição presidencial de 2003 e sempre acusava seus adversários, os jornais conservadores e vários empresários de fazer o jogo sujo do fundamentalismo de mercado.
Menem ganhou o primeiro turno com apenas 24,3% dos votos e abandonou o segundo turno, tentando negar legitimidade a Kirchner, que tivera 22% e passou o início de seu governo em busca de legitimidade.
No plano político, por reabrir os processos contra os torturadores e assassinos da última ditadura militar argentina, Néstor Kirchner ganhou o apoio incondicional das Mães da Praça de Maio. Para defender suas políticas, mobilizou os sindicatos peronistas e os piqueteiros, massas de desempregados que bloqueavam ruas e acesso a empresas em seus protestos.
Com a renegociação da dívida, a economia chegou a crescer 8% e o emprego se recuperou, mas o governo adotou políticas populistas, antiliberais e antimercado que afugentaram o investimento em setores essenciais como energia.
O ministro da Economia responsável pelo fim da moratória, Roberto Lavagna, foi afastado depois da vitória do casal Kirchner nas eleições parlamentares de 2005, quando Néstor consolidou seu domínio sobre o partido peronista, derrotando seu criador, Duhalde.
Cristina Kirchner disputou uma cadeira de senadora por Buenos Aires com Hilda Chiche Duhalde, a mulher de Eduardo Duhalde. Na festa da vitória, o casal Kirchner foi comparado ao casal Juan Domingo e Eva Perón, os fantasmas que pairam eternamente sobre a política argentina.
Diante do desgaste que representaria a luta por um segundo mandato, Néstor Kirchner lançou sua mulher, a senadora Cristina Fernández de Kirchner, como candidata à Casa Rosada. Ela se tornou, em 2007, a primeira mulher eleita presidente da Argentina.
O governo Cristina Kirchner foi marcado, em 2008, por um longo conflito com os produtores rurais por causa do aumento do imposto sobre exportação de grãos, uma saída para manter a arredacação sob o pretexto de combater a inflação nos preços dos alimentos.
Na ocasião, o maior jornal argentino, Clarín, que apoiara o governo Néstor Kirchner, ficou ao lado dos ruralistas. O casal declarou uma guerra à grande imprensa e ao maior grupo de mídia argentino. Mandou 200 fiscais do imposto de renda fazerem uma devassa nas empresas. Tomou de uma delas o direito de transmissão dos jogos do Campeonato Argentino de futebol. E conseguiu aprovar uma Lei de Meios de Comunicação que obrigaria o grupo Clarín a se desfazer de mais de 200 licenças de telerradiodifusão, parcialmente suspensa pela Justiça.
Desde antes da eleição de Cristina, o casal Kirchner é acusado de pressionar o instituto oficial de estatísticas a manipular os dados oficiais sobre crescimento de preços. O modelo kirchnerista, baseado em controle de preços e gastos públicos, começava a gerar inflação e crescimento baixo.
Hoje, a inflação oficial está em 11%, mas economistas independentes a calculam em 25% ao ano. A Argentina deve crescer 7% neste ano, o que recuperou parcialmente a popularidade do casal.
Anti-imperialista por suas raízes peronistas e pela ruptura com o sistema financeiro internacional, Néstor Kirchner cultivou uma relação com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, um dos grandes compradores de bônus da dívida argentina e financiadores da campanha de sua mulher.
Houve um escândalo quando um empresário venezuelano foi preso no aeroporto Jorge Newbery, em Buenos Aires, com US$ 790 mil não declarados numa maleta de mão, em 4 de agosto de 2007. Ele foi solto. O dinheiro seria para a campanha de Cristina.
Pragmático, mais interessado em resultados de curto prazo com peso sobre a economia e a opinião pública argentinas, Kirchner queria fortalecer o Mercosul. Via com desdém os esforços brasileiros de integração regional, mas acabou se tornando secretário-geral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul).
Kirchner pretendia usar o cargo como trampolim para voltar à Presidência da Argentina em 2011.
Por força de seu personalismo, sua morte deixa um grande vácuo no centro do poder na Argentina. Cristina sempre foi vista como uma presidente comandada pelo marido.
Este é o blog do jornalista Nelson Franco Jobim, Mestre em Relações Internacionais pela London School of Economics, ex-correspondente do Jornal do Brasil em Londres, ex-editor internacional do Jornal da Globo e da TV Brasil, ex-professor de jornalismo e de relações internacionais na UniverCidade, no Rio de Janeiro. Todos os comentários, críticas e sugestões são bem-vindos, mas não serão publicadas mensagens discriminatórias, racistas, sexistas ou com ofensas pessoais.
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Um comentário:
Um movimento de importância significativa no tabuleiro de xadrez da América do Sul. Valeu, Jobim, vc foi a primeira fonte em que eu vi a notícia.
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