O atentado terrorista anunciado ontem pelos serviços secretos dos Estados Unidos e do Reino Unido se concretizou hoje. Um terrorista suicida se detonou na área do aeroporto de Cabul, a capital do Afeganistão, matando cerca de 170 civis afegãos 13 fuzileiros navais americanos.
Outros 15 militares dos EUA foram feridos. O Estado Islâmico da Província do Coração (Khorasan) reivindicou a autoria do atentado, mais uma desmoralização para a desastrada retirada dos EUA.
Em entrevista neste momento, o presidente Joe Biden declarou se sentir "ultrajado", com o "coração partido", e prometeu "não perdoar nem esquecer. Vamos caçar vocês e fazê-los pagar" pelos crimes cometidos. É um líder fragilizado, com a política externa que pretende defender a democracia e os direitos humanos duramente abalada.
O erro fundamental da retirada foi abandonar antes da hora a base aérea de Bagram, que poderia ser usada como alternativa ao aeroporto de Cabul, criticou o senador republicano Lindsay Graham. Os EUA simplesmente abandonaram a base durante a noite e foram embora. Não avisaram o governo afegão e nem mesmo os aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A ação terrorista viola várias cláusulas do acordo de paz firmado em fevereiro de 2020 pelo governo Donald Trump e o Emirado Islâmico do Afeganistão, que os EUA dizem não reconhecer em todas as cláusulas.
Pelo acordo, a Milicía dos Talebã (Estudantes) se comprometeu a não atacar a retirada as forças internacionais que bombardearam e invadiram o Afeganistão a partir de 7 de outubro de 2001 em resposta aos atentados de 11 de setembro, realizado pela rede terrorista Al Caeda, que tinha bases no país. Também prometeu não deixar o território afegão ser usado como base para ataques a americanos e aliados.
O próprio nome Estado Islâmico da Província do Coração implica uma reivindicação sobre o Grande Coração, uma região que inclui parte do Nordeste do Irã, que tem províncias com este nome, a maior parte do Norte do Afeganistão e o Sul do Turcomenistão, do Tajiquistão e do Usbequistão. Existe desde 2015, depois que o Estado Islâmico proclamou, em 2014, a fundação de um califado nas terras que ocupava no Iraque e na Síria. Não pretende se limitar ao território afegão, cujas fronteiras não reconhece.
O acordo previa uma redução das hostilidades, não um cessar-fogo definitivo. Deveria ser complementado por um acordo de paz entre os Talebã e o governo-fantoche instalado pelos EUA, mas este governo nunca foi reconhecido pela maioria do povo afegão. Na última eleição presidencial, em 2020, votaram 1,8 milhões de eleitores num país de 39 milhões de habitantes.
A pseudodemocracia imposta pela guerra, em aliança dos EUA com senhores da guerra notoriamente corruptos como o ex-vice-presidente Rachid Dostum, não melhorou a vida do povo afegão no interior do país, onde vivem 75% da população. O povo não está preocupado com o regime político, mas com as condições de vida.
As milícias extremistas muçulmanas sabiam que os EUA e aliados iriam sair. Assim, seria apenas uma questão de tempo até os Talebã retomarem o poder. E a história recente mostra que o acontece no Afeganistão não fica no Afeganistão.
Dias atrás, o presidente Joe Biden ameaçou retaliar se os americanos fossem atacados durante a caótica retirada vista desde que os talebã entraram na capital afegã, em 15 de agosto. O problema é que a multidão que tenta desesperadamente sair do país através do aeroporto de Cabul é extremamente vulnerável a retaliações, o que amarra as mãos dos americanos. É praticamente impossível barrar um terrorista suicida no meio da multidão. Seria necessário montar várias barreiras de segurança a caminho do aeroporto.
Depois de 43 anos de guerra, desde que oficiais ligados ao Partido Comunista deram um golpe em 27 e 28 de abril de 1978, o Afeganistão precisa de paz a estabilidade para reconstruir o país miserável, extremamente dependente do exterior. Cerca de 43% do orçamento nacional vêm de ajuda internacional.
Com a Embaixada Americana em Cabul fechada, a China e a Rússia entram no vácuo de poder deixado pela retirada dos EUA. A Índia perde porque os Talebã são aliados do arqui-inimigo Paquistão, que pode usar os jihadistas afegãos na luta contra o domínio indiano sobre a Caxemira. A China reconheceu tacitamente o governo dos talebã ao receber no Grande Salão do Povo, em Beijim, o líder político da milícia, Abdul Ghani Baradar.
A China usa sua diplomacia econômica para conquistar apoio, especialmente de países em desenvolvimento, com o megaprojeto Um Cinturão Uma Rota, a Nova Reta da Seda, com orçamento de US$ 4 a 8 trilhões (R$ 21 a 42 trilhões), entre outras iniciativas. Pode investir centenas de milhões ou até bilhões de dólares na reconstrução do país em busca da estabilidade e negociar concessões para explorar os vastos recursos minerais do Afeganistão.
Tanto a China quanto a Rússia, e também a Índia, têm problemas com revoltas muçulmanas, a Rússia no Sul do Cáucaso, nas repúblicas da Chechênia, da Inguchétia e do Daguestão.
A China mantém cerca de 1 milhão de muçulmanos em centros de reeducação comparados a campos de concentração na província de Xinjiang.
Na Índia, o primeiro-ministro fundamentalista hindu Narendra Modi acabou com a autonomia da Caxemira, em 5 de agosto de 2019, e impôs uma administração direta que governa sob estado de emergência
Há usbeques e uigures lutando ao lado dos talebã no Afeganistão. É provável que grupos jihadistas tentem usar o Afeganistão para lançar ataques contra a China. Os Talebã têm várias facções. Muitas são contra fazer concessões.
Quanto aos EUA, a superpotência derrotada e humilhada, se a Guerra contra o Terror que começou em 11 de setembro de 2001 com os ataques a Nova York e ao Pentágono termina assim, com o caos e a morte de fuzileiros navais americanos em Cabul, elevando o total de militares dos EUA mortos no Afeganistão para 2.460, sofreram uma derrota dupla.
Tudo indica que a guerra não acabou. A vitória dos talebã dá nova vida aos grupos jihadistas no mundo inteiro. E o Estado Islâmico entende que os talebã não são suficientemente radicais. Afinal, negociaram com os EUA.
Um comentário:
Excelente, Nelson, obrigada pelo texto!
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