A presidente histórica da Associação das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, morreu hoje aos 93 anos no Hospital Italiano de La Plata, onde estava internada desde o dia 12, informou a família.
Defensora radical dos direitos humanos, lutou até o fim da vida para esclarecer os desaparecimentos durante a última ditadura cívico-militar da Argentina (1976-83). Duríssima em suas críticas, inclusive de aliados, nunca se calou, nem na ditadura nem na democracia.
Ela será cremada. As cinzas serão jogadas num espaço verde diante da Casa Rosada, onde estão as de Azucena Villaflor, fundadora e presidente das Mães da Praça de Maio sequestrada pela ditadura em 10 de dezembro de 1977, Dia Internacional dos Direitos Humanos. Nesta data, em 1948, as Nações Unidas aprovaram sua Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Em 30 de novembro de 1976, oito meses depois do golpe militar de 24 de março, durante o "processo de reorganização nacional", Néstor, filho de Azucena, e sua noiva, Raquel Mangin, foram sequestrados e desapareceram.
MÃES PROTESTAM
Ao recorrer às autoridades sem sucesso, ela tem contato com outras mães na mesma situação, entre elas Hebe de Bonafini. Em 30 de abril de 1977, 14 mães protestam na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino, contra o silêncio da ditadura diante do desaparecimento de seus filhos.
Quando os militares as advertem a não se concentrar, elas decidem circular pela praça em silêncio. A primeira marcha é num sábado. Depois, passa a se repetir toda quinta-feira às três e meia da tarde. Com o tempo, as mães passam a usar lenços de cabeça brancos com os nomes dos filhos desaparecidos.
FAMIGERADA ESMA
Azucena Villaflor foi sequestrada e levada para a famigerada Escola de Mecânica da Armada (ESMA), o principal centro de detenção e tortura da guerra suja dos militares argentinos contra a esquerda.
Os corpos dela e de outros sequestrados apareceram dias depois em praias do Rio da Prata. Os restos mortais só foram identificados em 2005. A autópsia revelou que a causa da morte foi impacto ao bater na água após ser jogada viva de um avião.
Pelo menos 5 mil dos 30 mil mortos pela última ditadura cívico-militar argentina passaram por aquele prédio na Avenida Figueroa Alcorta, uma das principais de Buenos Aires, onde fica o Estádio Monumental de Núñez, do River Plate, o maior do país.
Quem passava de carro e via as luzes acesas à noite sabia o que estava acontecendo na ESMA, onde mulheres que deram à luz tiveram de limpar o chão da sela com um pano de chão sujo, foram mortas e tiveram seus filhos roubados.
Mais de 500 crianças foram sequestradas e adotadas por aliados do regime, tema do filme A História Oficial, de Luiz Puenzo, ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1986. As Avós da Praça de Maio encontraram 130 netos até hoje.
DONA DE CASA VAI À LUTA
Hebe de Bonafini nasceu em 4 de dezembro de 1928 num bairro operário de Ensenada, que fica junto a La Plata, capital da Província de Buenos Aires. Aos 14 anos, casou com Humberto Alfredo Bonafini. O casal teve três filhos: Jorge Omar, Raúl Alfredo e María Alejandra.
Jorge Omar desapareceu em La Plata em 8 de fevereiro de 1977. Raúl Alfredo teve o mesmo destino em 6 de dezembro do mesmo ano, em Berazategui. Em 25 de maio de 1978, pouco antes da Copa do Mundo na Argentina, a repressão sequestrou a nora María Elena Bugnone Cepeda, mulher de Jorge Omar.
Presidente da Associação das Mães da Praça de Maio, Bonafini foi lutadora incansável na busca dos desaparecidos e seus filhos, os netos da Praça de Maio. Os militares as chamavam de Loucas da Praça de Maio.
"Antes que meu filho fosse sequestrado, até 7 de fevereiro de 1977, eu era uma mulher como as outras, uma dona de casa a mais da cidadezinha onde me criei. Em 8 de fevereiro, virei Hebe de Bonafini. A questão econômica, a situação política do país me eram totalmente alheias, indiferentes. Mas desde que desapareceu meu filho, o amor que eu sentia por ele, o afã de buscar até encontrá-lo, por rogar, por pedir, por exigir que o entregassem a mim; o encontro e a ânsia compartilhada com outras mães que sofriam a mesma angústia que eu me levaram a saber e a valorizar muitas coisas que não sabia e não me interessava em saber", declarou ela numa igreja em Madri em outubro de 1982.
"Agora, vou me dando conta de que todas as estas coisas com que muita gente não se preocupa são importantíssimas porque delas depende o futuro de um país inteiro, a felicidade ou a desgraça de muitíssimas famílias", acrescentou.
POPSTARS
Quando o roqueiro inglês Sting tocou na Argentina, em 1987, chamou as Mães para o palco no Estádio Monumental de Núñez e cantou a música They Dance Alone, composta em sua homenagem. Elas viraram popstars.
Em 1988, a banda de rock irlandesa U-2 visitou a Associação das Mães da Praça de Maio e as convidou a subir ao palco. Hebe foi ao show e presenteou o líder do grupo, Bono Vox, com um lenço com o nome dos filhos desaparecidos.
JUSTIÇA
A aliança com o kirchnerismo vem desde que o governo Néstor Kirchner (2003-7) revogou, em 21 de agosto de 2003, as Leis de Obediência Devida e Ponto Final e mais tarde os indultos de Carlos Menem (1989-99) aos comandantes das juntas militares. Em 2005, a Corte Suprema considerou as leis inconstitucionais e reabriu os processos contra sequestradores, torturadores e assassinos da ditadura. Em 2010, confirmou a inconstitucionalidade dos indultos.
Desde então, 1.065 pessoas foram condenadas em 269 sentenças. Há 364 casos em andamento, 17 nas fases finais dos processos.
CONTROVÉRSIAS
Visceralmente antinorte-americana, responsabiliza os EUA pela ditadura militar. Estava em Cuba em 11 de setembro de 2001 e festejou o ataque às Torres Gêmeas "pelo bloqueio, pelos meus filhos". Foi alvo de críticas ferozes. Não recuou.
Depois de criticar o cardeal Mario Bergoglio, então arcebispo de Buenos Aires, quando foi eleito papa Francisco, ela pediu desculpas em audiência privada no Vaticano e reconheceu seu trabalho para os pobres: "Ele é peronista", concluiu com orgulho.
Há até um escândalo de corrupção, o desvio de 206 milhões de um total de 748 milhões de pesos argentinos que os governos Néstor e Cristina Kirchner deram à Fundação Madres da Praça de Maio para construção de habitações populares no projeto Sonhos Compartilhados.
O juiz Martínez de Giorgio a considerou "partícipe de fraude contra o Estado". Em agosto de 2016, Hebe se negou a depor e declarou estar pronta para ser presa porque só o que lhe interessava eram "os filhos e os 30 mil desaparecidos."
A investigação é sobre Sergio Shoklender, procurador da fundação acusado de obter financiamento ilegal do Ministério do Planejamento Federal na gestão de Julio De Vido, um expoente do kirchnerismo hoje preso e processado por corrupção. Em seu depoimento, Hebe de Bonafini avalizou todas as ações de Shoklender. O caso não foi julgado até hoje.
HOMENAGENS OFICIAIS
O presidente Alberto Fernández decretou luto oficial por três dias e, através do Twitter da Casa Rosada, se despediu "com profunda dar e respeito a Hebe de Bonafini, Mãe da Praça de Maio e incansável lutadora pelos direitos humanos."
Nas suas redes, disse: "Exigindo verdade e justiça junto com as Mães e Avós, enfrentou os genocidas quando o sentido comum coletivo ia em outra direção."
Elas foram a grande resistência ao massacre no pior período da ditadura, desmoralizada pela derrota para o Reino Unido na Guerra das Malvinas (1982), quando militares assassinos como o tenente de navio Alfredo Astiz, o Anjo da Morte, acusado de matar a adolescente sueco-argentina Dagmar Hagelin com um tiro pelas costas, se renderam aos britânicos sem disparar um tiro.
A vice-presidente Cristina Kirchner escreveu: "Queridíssima Hebe, Mãe da Praça de Maio, símbolo mundial da luta pelos direitos humanos, orgulho da Argentina. Deus te chamou no Dia da Soberania Nacional... não deve ser casualidade. Simplesmente obrigado para sempre."
A Secretaria de Direitos Humanos da Argentina destacou que "Hebe compartilhou com as Mães um destino que as uniu na luta contra a impunidade dos crimes do terrorismo do Estado, resistindo diante do silêncio e do esquecimento. Sua vida e sua obra, seu exemplo de compromisso e entrega às causas populares constituem um legado que nos acompanhará para sempre, nos guiando no caminho da defesa dos direitos humanos, da memória, da verdade e da justiça, e também na luta contra a impunidade e o neoliberalismo."
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