A escritora Annie Ernaux, de 82 anos, se tornou hoje a 17ª mulher e a primeira francesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, anunciado em Estocolmo pela Academia Real da Suécia, “pela coragem e a acuidade clínica com que ela descobre as raízes, os estranhamentos e as restrições coletivas da memória pessoal”.
Com 20 livros publicados, Ernaux constrói sua ficção a partir da memória e da experiência pessoal. Borra a linha entre a ficção e a memória com uma prosa descrita por ela como “brutalmente direta, da classe trabalhadora e às vezes obscena”, em contraponto à “tradição francesa da sentença polida, do bom gosto na literatura.” Para ela, a linguagem é uma “faca”.
Pouco depois do anúncio, Ernaux declarou que sente “uma nova responsabilidade. Esta responsabilidade é de continuar o combate às injustiças, quaisquer que sejam, contra todas as formas de injustiças contra a mulher”.
Antes, tinha dito que “falando da minha condição como mulher, não me parece que nós, mulheres, tenhamos nos tornado iguais em liberdade, em poder.”
Ernaux foi influenciada por Simone de Beauvoir, o sociólogo Pierre Bordieau e a Revolução dos Estudantes de maio de 1968 em Paris.
Famosa há décadas na França, é comparada a autores franceses como Albert Camus, Simone de Beauvoir e Françoise Sagan, e considerada pioneira na autoficção: “Devo fazer um estudo etnológico de mim mesma”, disse no livro A Vergonha. Ela vem à Festa Literária Internacional de Parati (FLIP), a ser realizada de 23 a 27 de novembro.
Em Os Anos, Ernaux falou de sua juventude numa família de classe baixa na pequena cidade de Yvetot, na Normandia, na França do pós-guerra. Seu pai era violento e abusador. Aos 12 anos, ela viu o pai tentar matar a mãe, episódio mencionado em A Vergonha.
A mãe foi personagem decisiva na vida real: “Ela queria sobretudo me dar uma vida interessante, uma vida independente.” Quando percebeu que Annie ia bem na escola, fez tudo para que a filha tivesse sucesso intelectual e “notadamente para evitar que eu tivesse uma ocupação feminina”, “tinha quase um desprezo pelas mulheres que ficavam em casa.”
“Meu feminismo é por causa dela. Minha mãe não tinha medo de nada”, acrescentou.
O Acontecimento conta a história de um aborto que fez numa clínica clandestina de uma viela em 1963, quando a interrupção da gravidez era proibida na França.
A História de uma Garota descreve uma adolescência marcada por uma relação amorosa difícil e a bulimia. Também escreveu sobre a morte dos pais.
Em Uma Mulher Congelada, explora seu descontentamento com o casamento e a maternidade. A consequência foi o divórcio. Ela nunca mais se casou. Preferiu a liberdade de viver sozinha.
“Em cartas que escrevi aos 16 anos, tinha uma repugnância pelo casamento. Na época, não imaginava outra maneira de estar com um homem. Cedo tive um sentimento de que o casamento não era outra coisa que quase o fim da vida”, afirmou em entrevista ao jornal Le Monde em 2016.
Perdendo-se, escrito na forma de um diário dos anos de 1988 a 1990, desbrava um caso amoroso que teve em Paris com um jovem diplomata soviético casado. “Percebi que tinha perdido uma lente de contato”, escreveu. “Encontrei-a no seu pênis.”
Annie Ernaux tem quatro livros publicados no Brasil: Os Anos, O Acontecimento, O Lugar e A Vergonha. O Jovem, que está no prelo e deve ser lançado na FLIP, revela um caso que ela teve com um homem 30 anos mais moço. Os três primeiros livros viraram filmes e podem ser vistos em streaming.
Seu método é tentar vivenciar a memória, não apenas lembrar: “Tento estar dentro… Estar lá no verdadeiro instante, sem extravasar antes ou depois. Estar na pura imanência de um momento.”
Esquerdista radical, diz que viveu a luta de classes desde o início da vida. Fez parte do Parlamento Popular, criado para apoiar a candidatura presidencial de Jean-Luc Mélenchon, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno, em 10 de abril deste ano, com expressivos 22% dos votos.
Na entrevista ao Le Monde em 2016, Ernaux confessou: “Logo me opus à autoridade. Só pensava em desobedecer.” A rebeldia é sua marca registrada.
Amanhã, o Comitê Norueguês do Nobel anuncia o ganhador do prêmio da paz. Na segunda-feira, será vez do Nobel de Economia.
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