quarta-feira, 5 de março de 2025

Trump marca data para tarifaço e ameaça tomar Groenlândia à força

No mais longo discurso de um presidente dos Estados Unidos no Congresso, em 99 minutos, Donald Trump mentiu, se autoelogiou, exaltou o ataque do bilionário Elon Musk à máquina do Estado e falou para sua base. Num sectarismo que aprofunda a divisão do país em que apostou para se reeleger, descreveu um cenário de violência, decadência e catástrofe econômica no governo Joe Biden. O deputado democrata Al Green foi expulso do plenário por protestar contra o discurso, algo inédito.

De concreto, prometeu um novo tarifaço para 2 de abril, citando o Brasil entre os alvos, prometeu mais uma vez retomar o Canal do Panamá, sem dizer se basta uma empresa dos EUA assumir o controle dos portos de entrada e saída, ameaçou dominar a Groenlândia "de um jeito ou de outro" e anunciou que o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, enviou mensagem dizendo estar pronto para negociar a paz depois de ser humilhado na Casa Branca na sexta-feira passada.

A popularidade ds presidente dos EUA está em queda: 59% dos eleitores independentes não aprovam o governo; 45% acreditam que o país não está na direção correta e 39% acham que sim; e 52% entendem que Trump não está se dedicando aos maiores problemas do país, especialmente a alta no custo de vida.

Trump repetiu os temas de sempre: imigração, cortar "desperdício, fraude e abuso", guerras culturais contra o politicamente correto e ataques a Joe Biden. Falou que o Departamento de Eficiência Governamental (Doge) chefiado por Musk encontrou problemas de "centenas de bilhões de dólares" sem mencionar provas. Musk fala em US$ 105 bilhões, mas a página do Doge registra apenas US$ 18,6 bilhões.

O presidente também defendeu a pena de morte para assassinos de policiais e a criação de um sistema de defesa antimísseis. Pouco disse sobre o que mais preocupa os eleitores, a inflação e o custo de vida.

"Os EUA estão de volta. Seis semanas atrás, proclamei o início de uma idade de ouro" e disse que desde então fez "um esforço rápido e incansável para criar essa nova era", arrancando os primeiros protestos dos democratas, que levantaram discos dizendo "Falso", "Trump mente" e "Musk rouba". Os líderes democratas se negaram a participar do cortejo na entrada do presidente.

No seu estilo hiperbólico, grandiloquente e mentiroso, Trump afirmou que recebeu um mandato como não se via há décadas. Em realidade, não teve maioria absoluta.

Em 43 dias, Trump baixou mais de 100 decretos e mais de 400 iniciativas. Declarou que é o governo mais bem-sucedido, à frente de George Washington (1789-97), ignorando os 100 primeiros dias de Franklin Roosevelt (1933-45) na luta contra a Grande Depressão (1929-39).

ATAQUE À MAQUINA PÚBLICA

Trump se vangloriou de congelar as contratações, as regulamentações e a ajuda externa do governo federal dos EUA. "Acabei com o Novo Pacto Social Verde e com o Acordo de Paris, que nos custa trilhões de dólares. Saí da corrupta Organização Mundial da Saúde (OMS) e do antinorte-americano Conselho de Direitos Humanos da ONU."

Quando voltou ao Acordo de Paris sobre Mudança do Clima, em 2021, Biden prometeu US$ 11,4 bilhões. Ao falar em trilhões, Trump mostra mais uma vez que não tem o menor compromisso com a verdade.

Depois de atacar as ambiciosas políticas ambientais de Biden, Trump partiu para as guerras culturais tão a gosto da extrema direita: "Acabei com toda a censura e trouxe a liberdade de expressão de volta", enquanto ameaça prender jornalistas Ele foi excluído do Twitter e do Facebook por fomentar o assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, numa tentativa de golpe de Estado sem precedentes na história dos EUA.

"Renomeei o Golfo do México como Golfo da América. Renomeei o Monte McKinley. Acabei com a tirania da diversidade, equidade e inclusão no governo e no setor privado. (...) Removi a teoria crítica sobre raça das escolas. Decidi que só existem dois gêneros: masculino e feminino. Proibi homens de disputar esportes femininos." Trump proibiu os tratamentos para mudança de gênero antes dos 19 anos.

É o que ele chama de "revolução do senso comum". Não há mais nenhum negro e nenhuma mulher no Estado-Maior das Forças Armadas dos EUA, só generais brancos.

Por causa das campanhas antivacinas, das quais o secretário da Saúde, Robert Kennedy Jr., é um dos principais responsáveis, há hoje mais casos de sarampo no Texas do que atletas transgêneros no país inteiro.

Ao prometer reduzir o custo de vida, se limitou a acenar com uma redução nos preços de energia com maior exploração de gás e petróleo.

Para defender a devassa e virtual destruição da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID), Trump chegou a dizer que financiava camundongos transgêneros. Com menos de 0,7% do orçamento federal, a agência era responsável por 40% da ajuda humanitária no mundo.

Numa das grandes mentiras da noite, Trump teve a cara de pau de dizer que há mais de 4,7 milhões pessoas de mais de 100 anos recebendo benefícios previdenciários, inclusive um de 360 anos. Na verdade, a Previdência Social paga benefícios a 89 mil centenários.

"Vamos equilibrar o orçamento federal, o que não se faz há 24 anos", prometeu o presidente. Na campanha eleitoral de 2000, a discussão era o que fazer com o superávit de US$ 100 bilhões. O então vice-presidente Albert Gore Jr. queria fortalecer a Previdência Social. O candidato vencedor, George Walker Bush, preferiu dar cortes de impostos para os ricos.

O que Trump pretende fazer? Dar mais cortes de impostos para bilionários e multimilionários. A estimativa é que reduzam a arrecadação em pelo menos US$ 5 trilhões em 10 anos. Assim, a dívida pública dos EUA, que está hoje em US$ 36 trilhões, vai aumentar. 

Musk calculou que o país gaste US$ 1 trilhão por ano com os juros da dívida, mais do que o orçamento do Departamento da Defesa (Pentágono) para 2025, que é de US$ 850 bilhões. Trump ameaçou perseguir deputados e senadores que votarem contra os cortes de impostos para que não se reelejam.

"Há 100 anos a burocracia federal cresce e atrapalha os negócios. Centenas de milhares não aparecem para trabalhar. O governo dos burocratas não eleitos acabou", continuou Trump. A Casa Branca diz que só 6% dos funcionários federais se apresentam para trabalhar, o que é uma mentira. Paralisaria a máquina pública.

REINDUSTRIALIZAÇÃO

Outra proposta é reindustrializar os EUA com energia barata e altas tarifas sobre produtos importados enquanto oferece isenções de impostos para quem abrir fábricas no país: "É nossa hora de impor tarifas", anunciou citando como alvos, além do México, do Canadá e da China, já supertarifados, a União Europeia, o Brasil e a Índia. A ideia é usar a reciprocidade, cobrando as mesmas tarifas que outros países cobram sobre importações dos EUA.

Em relação ao México e ao Canadá, que prometeram na terça-feira retaliar o tarifaço de Trump, o presidente acusou-os pela imigração ilegal e o tráfico de droga fentanil. A imigração ilegal através da fronteira do Canadá é mínima e lá só foram aprendidos 20 quilos de fentanil no ano passado, 500 vezes menos do que na fronteira com o México. Isto indica que o objetivo dos tarifaços é equilibrar a balança comercial, que registrou um déficit de US$ 918,4 bilhões no ano passado.

Ele admitiu que a guerra comercial vai trazer "alguns distúrbios", mas alegou que a estratégia protecionista já resultou em promessas de investimentos de US$ 1,3 trilhão. Pelo discurso de Trump, os tarifaços não são apenas uma jogada para negociar, como sugeriu  o secretário do Comércio, Howard Lutnick. Devem ser de longo prazo.

SEGURANÇA

Ao abordar a imigração ilegal, outro tema favorito do presidente fascistoide, começou com uma grande mentira: "21 milhões entraram no país nos últimos quatro anos", descritos mais uma vez como traficantes, estupradores e assassinos. A estimativa é que haja 11 milhões de imigrantes ilegais nos EUA. Trump levou a mãe e a irmã de uma joven assassinada para dizer que "a morte de Laken Riley não foi em vão." A mãe foi aplaudida e chorou. Faz parte do circo desses discursos presidenciais.

"Não precisávamos de uma nova lei para garantir a segurança na fronteira. Tudo o que precisávamos era de um novo presidente. A invasão de imigrantes destruiu várias cidades." Citou como exemplo Springfield, no estado de Ohio. Durante a campanha, acusou refugiados haitianos de comer cães e gatos de estimação na cidade, uma mentira.

Trump prometeu ir à guerra contra os cartéis mexicanos do tráfico de drogas e atribuiu à guerra comercial a deportação de 29 traficantes entregues pelo México ao governo norte-americano. Insistiu que está fazendo a maior deportação de ilegais da história, mas os números são muito inferiores ao que pretendia.

A fim de aumentar a segurança nas cidades, acenou com uma reforma do sistema de justiça que na verdade tenta blindá-los de futuros processos: "Nosso sistema de justiça foi virado de cabeça para baixo por lunáticos para instrumentalizar a Justiça contra adversários políticos como eu", um criminoso condenado por forjar documentos de suas empresas para encobrir a compra do silêncio de uma atriz pornô com quem teve um caso. 

Outros três processos, dois por tentar fraudar a eleição de 2020 e tentar um golpe, e o terceiro por levar para casa documentos secretos e ultrassecretos, foram extintos pela reeleição.

"Para aumentar a segurança nacional, vamos retomar o Canal do Panamá", reiterou Trump. Não explicou se basta uma empresa norte-americana assumir o controle dos portos de entrada e saída do canal, que estavam com chineses, ou se planeja reassumir o controle total.

"Também tenho uma mensagem para o povo da Groenlândia. Vocês têm o direito de escolher seu futuro e se quiserem se unir a nós", prometeu um futuro de segurança e riqueza, mas acrescentou uma ameaça: "De um jeito ou de outro, vamos conseguir. Vamos proteger vocês e torná-los ricos. É fundamental para a segurança do mundo."

O presidente anunciou que o terrorista do Estado Islâmico que atacou a retirada norte-americana do Afeganistão foi preso com a ajuda do Paquistão e está sendo enviado para responder processo nos EUA. Cerca de 170 civis e 13 militares norte-americanos morreram no ataque. Trump negociou a paz com a Milícia dos Taleban sem exigir desarmamento nem acordo com o governo afegão apoiado pelos EUA.

Sobre o Oriente Médio, elogiou os Acordos de Abraão de reconhecimento de Israel por quatro países árabes (Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Marrocos e Sudão). Nenhum deles estava em guerra com Israel. Não falou no projeto para expulsar os palestinos e transformar a Faixa de Gaza num empreendimento imobiliário. Os aliados árabes já apresentaram um plano alternativo.

Trump insistiu na mentira de que os EUA deram mais ajuda à Ucrânia do que a Europa, no valor de US$ 350 bilhões, mesmo depois de ser corrigido na Casa Branca pelo presidente da França, Emmanuel Macron, que esclareceu que a Europa deu 60% do total da ajuda. Os EUA deram pouco mais de US$ 100 bilhões.

"Hoje recebi uma carta do presidente [Volodymyr] Zelensky dizendo que a Ucrânia está pronta para negociar a paz", anunciou Trump. Na verdade, só repetiu uma mensagem publicada na rede social X pelo líder ucraniano, humilhado na sexta-feira passada na Casa Branca por não querer assinar um acordo para ceder a metade da riqueza mineral do país sem garantias de segurança contra um possível futuro ataque da Rússia.

Aliás, ele praticamente não falou da China e da Rússia, maiores inimigas dos EUA.

REAÇÃO DEMOCRATA

A resposta do Partido Democrata, feita pela senadora por Michigan Elissa Slotkin, se concentrou em três pontos: a economia, a classe média e a democracia – ameaçadas por Trump.

"Seus planos não ajudam a maioria dos norte-americanos a avançar. Ele está cortando impostos para os bilionários. As tarifas vão aumentar os preços. A dívida pública vai aumentar. Ele pode provocar uma recessão, advertiu a senadora.

Ela acusou Musk de citar a Previdência Social como grande fonte de fraudes, enquanto demite quem cuida das armas nucleares, controladores de voo e pesquisadores do combate ao câncer. Slotkin acrescentou que de nada adianta reforçar a segurança na fronteira sem mudar o sistema de imigração e alertou que a democracia está ameaçada.

Ao concluir, disse que "é fácil ficar exausto, mas não dá". Propôs que os cidadãos se organizem cobrem mais dos políticos e ajam. "Os maiores movimentos vêm de baixo para cima. Vivemos momentos de instabilidade o passado. Precisamos de cidadãos engajados e líderes com princípios."

O grande desafio dos democratas é resistir como possível até as eleições de 2026, quando Trump deve perder a maioria na Câmara e virar um "pato manco", expressão que os norte-americanos usam para se referir a políticos em fim de mandato. Será uma longa travessia para os EUA e o resto do mundo.

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