quinta-feira, 8 de julho de 2021

Assassinato do presidente aprofunda tragédia no Haiti

 Com o assassinato do presidente Jovenel Moïse na madrugada desta quarta-feira, o Haiti, país mais pobre da América, está no meio de nova convulsão política, em estado de sítio, sob lei marcial, com a fronteira com a República Dominicana fechada. À noite, a polícia haitiana anunciou a morte de quatro "mercenários estrangeiros" que seriam responsáveis pelo homicídio e a prisão de outros dois.

É o primeiro assassinato de um presidente na América desde a morte de John Kennedy, em 22 de novembro de 1963. Os assassinos teriam se apresentado na residência particular de Moïse à uma hora da madrugada como policiais da DEA (Drug Enforcement Administration), a agência federal de repressão às drogas ilegais nos Estados Unidos, especialmente do tráfico, parte do Departamento da Justiça. A viúva do presidente assassinado, Martine Moïse, é levada ferida em estado grave para tratamento em Miami, nos EUA.

"Este foi um ataque altamente coordenado de um grupo fortemente armado com muito treinamento", declara o primeiro-ministro interino, Claude Joseph, que pede calma à população. Ele acrescenta que os assassinos falavam inglês e espanhol. O Haiti fala francês e créole, a língua crioula haitiana.

Em Washington, o embaixador haitiano nos EUA, Bocchit Edmond, afirma que o país está em calma e repete que os assassinos são estrangeiros que tiveram apoio local. O embaixador na Colômbia, Jean-Marie Exil, recebeu mensagens contando que houve mais de 15 minutos de tiroteio na casa de Moïsi.

Ele deve ter sido morto por gangues a mando de inimigos políticos ou do crime organizado. Um dos principais suspeitos de ser o mandante é Jimmy Cherizier, conhecido como Churrasco, um ex-policial sancionado pelo governo dos EUA pelo massacre de 71 pessoas na favela de La Saline, em Porto Príncipe, em 2008.

Cherizier lidera uma associação de gangues conhecida como Aliança G9. Na sexta-feira, ele pediu aos membros das gangues para apontar suas armas para o governo porque não cumpriu a promessa de reduzir a pobreza: "Jovenel precisa ir, ele tem de ir." 

O presidente morto era um milionário exportador de bananas indicado para o cargo por seu antecessor, Michel Martelly (2011-16), um astro do pop que fez fortuna nos EUA e resolveu voltar ao país depois do devastador Terremoto de Porto Príncipe, em 12 de janeiro de 2010, que matou 200 mil pessoas.

Moïsi vence o primeiro turno da eleição presidencial, em 15 de outubro de 2015, mas o segundo turno é suspenso em meio a denúncias de fraude. Uma nova eleição é realizada em 20 de novembro de 2016 e ele é declarado vencedor no primeiro turno.

Sem conseguir organizar eleições parlamentares, desde janeiro de 2020, ele governava por decreto. Recentemente, negava-se a deixar o poder, alegando que seu mandato começou de fato em 7 de fevereiro 2017. Era acusado de querer se tornar um ditador.

"Todos os setores da sociedade, inclusive a Igreja Católica, os pastores protestantes e os sacerdotes de vodu, tentaram convencê-lo a sair do caminho autoritário, mas, em vez disso, ele sempre dobrou a aposta", lembrou Alice Blanchet, consultora de cinco primeiros-ministros haitianos.

A via autoritária inclui o uso de gangues armadas para aterrorizar adversários políticos, aumentando o clima de insegurança e violência que acabou com o fuzilamento de Moïsi.

HISTÓRIA TRÁGICA

A tragédia haitiana é histórica. O país foi a primeira república negra do mundo. Em meio à Revolução Francesa, começa a Revolução Haitiana (1791-1804), liderada por Toussaint L'Overture, o primeiro general negro do Exército da França.

Era a segunda república da América e a primeira da América Latina, o primeiro país a abolir a escravatura e o único nascido de uma revolta de escravos. Derrota a França napoleônica para se tornar independente. Vence também o Império Britânico. Isolado da sociedade internacional, afunda em conflitos internos e no autoritarismo, destrói suas florestas e se torna o país mais pobre do continente.

Em 1915, o país é alvo de uma intervenção militar ordenada pelo presidente Woodrow Wilson (1913-21) para "proteger os interesses americanos e estrangeiros", especialmente da companhia Sugar Company, que só termina em 1934. É mais longa do que a Lei Seca (1920-33).

Depois de mais um período de instabilidade política, em 1957, é eleito presidente o médico François Duvalier, o Papa Doc. Em 1958, ele sobrevive a uma tentativa de golpe de Estado. A partir daí, instaura uma ditadura brutal e saqueia os cofres públicos, desviando a ajuda internacional, o que irrita o presidente John Kennedy. 

TERRORISMO DE ESTADO

Duvalier cria uma política política, na verdade um esquadrão da morte inicialmente treinado pela CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) durante a Guerra Fria. 

Os Tontons Macoutes eram um braço do terrorismo de Estado inspirado no fascismo para perseguir, intimidar, torturar e matar os inimigos do regime. Chegavam a requintes de crueldade como serrar as pernas de suas vítimas. 

Com a morte do Papa Doc, em 1971, seu filho Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, herda o poder e mantém a ditadura até ser derrubado por uma revolta popular em 7 de fevereiro de 1986. Cerca de 60 mil pessoas foram mortas pela ditadura duvalierista.

Assume o poder o general Henry Namphy. A tentativa de realizar eleições em novembro de 1987 é frustrada quando os antigos Tontons Macoutes atiram nas pessoas que faziam fila para votar.

Em janeiro de 1988, é eleito Leslie Manigat, deposto em 20 de junho por um golpe liderado pelo general Namphy, por sua vez derrubado em 17 de setembro pelo comandante das Forças Armadas, general Prosper Avril. Ele governa até 10 de março de 1990, quando transfere o poder ao novo comandante das Forças Armadas, general Hérard Abraham, que o passa à presidente da Suprema Corte, Erthal Pascal-Trouillot.

DEMOCRACIA GOLPEADA

O Haiti realiza então sua primeira eleição presidencial democrática. Ganha Jean-Bertrand, um padre católico de esquerda seguidor da Teologia da Libertação. Ele toma posse em 7 de fevereiro e é deposto em 29 de setembro pelo general Raoul Cédras.

Sob pressão internacional, inclusive dos EUA, Cédras renuncia em 10 de outubro de 1994. Aristide volta, abole as Forças Armadas em 1995 e completa o mandato até 7 de fevereiro de 1996, quando é sucedido por René Préval, que fora seu primeiro-ministro e governa até 2001.

Aristide volta em 4 de fevereiro de 2001, depois de uma eleição com 90% de abstenção, de acordo com a ONU. Em 2003, pede à França uma restituição de US$ 21 bilhões pelos 90 milhões de francos-ouro pagos como indenização pelas propriedades francesas expropriadas na Revolução Haitiana.

No início de 2004, forças militares ligadas ao antigo Exército e aos Tontons Macoutes iniciam uma rebelião. Tomam o porto de Gonaïves, a quarta maior cidade do país, em 5 de fevereiro, e Cabo Haitiano, a segunda maior cidade, em 22 de fevereiro. 

Sob pressão dos EUA e da França, em meio a uma revolta popular, Aristide renuncia em 29 de fevereiro dizendo querer evitar um banho de sangue e sai do país escoltado por forças dos EUA. Depois, alegou que foi vítima de golpe e foi sequestrado.

A presidência passa para o presidente do Supremo Tribunal, Boniface Alexandre, que pede a ajuda das Nações Unidas para pacificar o país. O Conselho de Segurança cria, então, a Misssão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah) e entrega o comando da operação ao Brasil.

Em 7 de fevereiro de 2006, após quatro adiamentos, René Préval é eleito no primeiro turno para um segundo mandato (2006-11), durante o qual o país recebeu ajuda da Venezuela de Hugo Chávez, mas é duramente abalado pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010.

Michel Martelly se elege num país abalado por 200 mil mortes com o compromisso de restaurar as Forças Armadas e promessas de ajuda internacional de US$ 10 bilhões da sociedade internacional. O então secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, prometeu a mim, em entrevista à TV Brasil, que o Haiti não seria abandonado de novo. Não é o que parece.

CORRUPÇÃO ENDÊMICA

No governo Martelly (2011-16), a corrupção endêmica torna-se mais evidente, com o escândalo da PetroCaribe, a subsidiária da companhia estatal Petróleos de Venezuela S. A. (PdVSA) para a região, com desvio de grande parte dos US$ 4,6 bilhões da ajuda venezuelana num país com renda média por habitante de menos de US$ 2.920.

O governo Moïsi é tumultuado desde o início, em 7 de fevereiro de 2017. Em maio, os trabalhadores da indústria saem às ruas para pedir aumento no salário mínimo, de cerca de 5 dólares por dia, sem sucesso. O movimento cresce com a adesão de outros setores da população e pede a renúncia do presidente.

Um aumento de 50% nos combustíveis, sob pressão do Fundo Monetário Internacional (FMI), em fevereiro de 2019, e novos escândalos de corrupção provocam uma nova onda de protestos de rua. Pelo menos 17 pessoas são mortas e 200 feridas pela repressão policial em setembro e outubro daquele ano.

A crise terminal do governo Moïsi está instalada. Fica pior ainda com a pandemia do coronavírus. Oficialmente, o país teve apenas pouco mais de 19 mil casos e 462 mortes, mas nenhum de seus 11 milhões habitantes foi vacinado até agora no país.

ONDA MIGRATÓRIA

A próxima eleição presidencial está prevista para setembro, mas, diante do assassinato do presidente, no momento, todo o mundo espera o pior, mais miséria e violência, observa o jornal francês Le Monde. 

"Estou realmente preocupado que o Haiti afunde agora num caos total e absoluto", teme o ex-embaixador americano em Porto Príncipe Luis Moreno. "A estabilidade do Haiti é do interesse dos EUA", comentou o  embaixador haitiano em Washington.

Com o agravamento da crise crônica do Haiti, a expectativa é de uma nova migratória em busca de uma vida melhor nos EUA. Em maio, a Patrulha de Fronteiras dos EUA descobriu 2.928 haitianos tentando entrar no país através do México; em maio do ano passado, foram oito.

Outros países que tradicionalmente recebem exilados haitianos - Bahamas, Brasil, Canadá, Chile, Cuba, República Dominicana e França - devem sentir um aumento do fluxo migratório.

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