domingo, 3 de outubro de 2021

Papéis de Pandora revelam fortunas de políticos escondidas em paraísos fiscais

Ministro da Economia e presidente do Banco Central são citados

Mais de 330 dirigentes políticos de 91 países têm fortunas em paraísos fiscais, revelou o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) no escândalo dos Pandora Papers (Papéis de Pandora), de corrupção e evasão fiscal.

Entre eles, há 35 chefes e ex-chefes de Estado e de governo, do rei Abdala II, da Jordânia, ao ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, nove presidentes e quatro primeiros-ministros no exercício do cargo, inclusive o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e 130 bilionários e celebridades como Ringo Starr, Elton John e Shakira. 

Não é crime ter conta no exterior declarada à Receita Federal e ao Banco Central, como é o caso dos brasileiros. Seria no mínimo antiético num país que gasta mais do que arrecada, vive em desequilíbrio fiscal e onde os mais ricos pagam menos impostos proporcionalmente. Para servidores públicos, é proibido.

Em 2014, às vésperas da reeleição da presidente Dilma Rousseff, o atual ministro da Economia criou uma empresa offshore de US$ 9,5 milhões (R$ 23 milhões pelo câmbio da época, R$ 51 milhões pelo atual). Mesmo após assumir o cargo, Guedes continuou no controle direto. Até 28 de setembro de 2021, a Dreadnoughts International estava ativa com o ministro como sócio controlador, informou a revista piauí, que fez parte da investigação.

Guedes e Campos Neto declararam ter informado a Comissão de Ética Pública antes de assumir o governo e disseram que se afastaram das empresas antes de tomar posse em cargos públicos. A comissão só examinou a situação do ministro dois anos e meio depois. Não viu nenhum problema, não fez nenhuma recomendação e encerrou o caso.

A oposição pediu ao Ministério Público Federal que investigue possíveis conflitos de interesses e vai convocar os dois para dar explicações ao Congresso.

Durante um ano, o consórcio e 615 jornalistas de 117 países e 149 meios de comunicação, entre eles os jornais Th Guardian, Le Monde e The Washington Post, a revista Piauí e os jornais digitais Metrópoles e Poder 360 no Brasil, examinaram 11,9 milhões de documentos confidenciais enviados por uma fonte anônima, vazados de 14 escritórios de advocacia especializados na criação de empresas de fachada em paraísos fiscais como Cingapura, Dubai, Ilhas Cayman, Ilhas Seicheles, Ilhas Virgens Britânicas, Mônaco e Panamá.

Cinco anos depois da revelação dos Panama Papers (Papéis do Panamá), a investigação mostra a dimensão das manobras de sociedades anônimas, dirigentes políticos e bilionários para fugir do fisco. Mesmo que seja tudo feito dentro da lei, é um privilégio inaceitável a que a maioria da população não tem acesso. 

LISTÃO

A nova lista é longa. Além de Abdalla II, Blair, Guedes e Campos Neto, e do primeiro-ministro tcheco, Andrej Babis, fazem parte amigos do ditador da Rússia, Vladimir Putin, e os presidentes do Azerbaijão, Ilham Aliev; do Chile, Sebastián Piñera; de Chipre, Nicos Anastasiades; do Congo, Denis Sassou-Nguesso; do Equador, Guillermo Lasso; do Gabão, Ali Bongo; de Montenegro, Milo Djukanovic; do Quênia, Uhuru Kenyatta; e da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.

O rei da Jordânia tem um verdadeiro império imobiliário até agora desconhecido do público. Tem 14 residências de luxo nos Estados Unidos e no Reino Unido com um valor total estimado em US$ 106 milhões (R$ 569 milhões). Sua última aquisição foi uma mansão de frente para o mar em Malibu, na Califórnia.

Para esconder sua fortuna, Abdala II teve a ajuda de um escritório de contabilidade britânico que criou 30 empresas de fachada nas Ilhas Virgens Britânicas e no Panamá. Ao consórcio de jornalistas, seus advogados declararam que tudo foi comprado com o dinheiro do rei, que pela lei jordaniana é isento de pagar impostos. 

As contas offshore seriam mantidas por "razões legítimas de segurança e confidencialidade". Se um dia for deposto e não perder a cabeça, Abdala tem para onde fugir.

Quando conquistou a liderança do Partido Trabalhista, em 1994, Tony Blair prometeu uma reforma fiscal para enquadrar os magnatas que depositam seu dinheiro em paraísos fiscais para não pagar impostos que o cidadão comum é obrigado a pagar.

Ao comprar uma casa numa zona nobre de Londres por 6,25 milhões de libras (R$ 45,45 milhões), o cidadão Blair pagaria 340 mil libras de imposto (R$ 2,472 milhões), mas a casa estava em nome de uma empresa offshore de um ministro do Bahrein, Zayed ben Rachid al-Zayani. 

O casal Blair comprou a empresa e a propriedade da casa veio junto. Para as autoridades fiscais britânicas, a proprietária continua sendo a mesma empresa. Não foi pago imposto de transmissão.

Sexto homem mais rico da República Tcheca, Andrej Babis, primeiro-ministro desde 2017, é dono do Château Bigaud, um castelo de dois andares com sala de jogos com mesa de bilhar, cinema, sauna e duas piscinas cercada de uma grande área nas colinas de Mougins, nos Alpes Marítimos, na Riviera Francesa. Comprou em 2009 por 14 milhões de euros (R$ 87,16 milhões) através de paraísos fiscais.

Babis tinha ali perto um restaurante estrelado que fechou em 2019 e uma propriedade de 40 mil metros quadrados não declarada em nome de empresas de fachada. Ele declarou que "todas as transações foram perfeitamente legais".

LAVANDERIA

Um dos menores países da União Europeia (UE), Chipre é notório pela falta de transparência do seu sistema financeiro, onde as máfias da Rússia lavam seu dinheiro. Antes de se tornar presidente, Nicos Anastesiades era dono de um escritório de advocacia ligado a empresas offshore envolvido no escândalo de lavagem de dinheiro do advogado russo Serguei Magnitsky e na Troika Laundromat (Lavagem Automática Troika), um gigantesco esquema para tirar dinheiro da Rússia.

Em teoria, Anastasiades deixou a empresa para ser presidente. Na prática, suas duas filhas estão lá e ele tem um escritório na sede da empresa.

Durante 20 anos, Denis Sassou-Nguesso, ditador da República do Congo, o antigo Congo Francês, desde 1997, teve uma empresa offshore, a Inter African Investment, com conta em Londres no Banco Espírito Santo, de Portugal.

Através do escritório de advocacia Mossack Fonseca, que estava no centro do escândalo dos Papéis do Panamá, Sassou-Nguesso fundou uma empresa ultrassecreta, a Ecoplan Finance, onde sua filha é uma diretora. 

A Ecoplan é acionista majoritária de Escom Congo, uma empresa da construção civil que detém direitos de exploração de minas de diamantes, com faturamento anual de 150 milhões de euros (R$ 934 milhões). As empresas offshore de Sassou-Nguesso foram dissolvidas depois do escândalo dos Panama Papers.

Volodymyr Zelensky era comediante, ator e diretor de cinema antes de se eleger presidente da Ucrânia denunciando a corrupção dos oligarcas, mas tinha uma empresa offshore nas Ilhas Virgens Britânicas ligada à indústria cinematográfica. Antes da eleição, em 2019, transferiu 25% para um amigo que é um assessor direto. Não comentou a notícia.

DINASTIAS

A família Aliev, que governa o Azerbaijão de pai para filho, tem imóveis em Londres no valor de 86 milhões de libras (R$ 625 milhões).

Outra dinastia abastada é a família do presidente do Quênia, Uhuru Kenyatta, filho do líder da independência e primeiro presidente, Jomo Kenyatta, dona de uma fundação secreta com mais de US$ 30 milhões (R$ 161 milhões) no Panamá.

O presidente do Equador, Guillermo Lasso, tem uma conta secreta nos EUA em nome de uma empresa panamenha e um fundo em Dakota do Sul, nos EUA.

De acordo com a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2020, havia pelo menos US$ 11,2 trilhões (R$ 60 trilhões) em paraísos fiscais, que os protegem dos impostos, das leis e da Justiça dos países de origem do dinheiro.

No sistema capitalista, os paraísos fiscais são considerados parte da paisagem, mas houve uma ação depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA. Não só as multinacionais, políticos, multimilionários e bilionários usam este mundo opaco e dissimulado. O crime organizado, as máfias e os terroristas também lavam dinheiro.

Desde 2013, houve 12 vazamentos de documentos sobre escândalos ligados a paraísos fiscais.  Eles existem e sobrevivem porque há uma rede de empresas, escritórios de advocacia, bancos e corretoras de valores. "O sistema se perpetua com uma concorrência para o mínimo em matéria de transparência", observa o jornal Le Monde.

NOVOS ELDORADOS

Os Pandora Papers mostram o surgimento de novos paraísos fiscais. Enquanto as ilhas do Mar do Caribe foram enquadradas pela OCDE, pequenos países poderosos com grandes centros financeiros como Cingapura e os Emirados Árabes Unidos e territórios ligados a grandes potências, Hong Kong na China, Chipre na UE e o estado de Dakota do Sul, nos EUA, são os novos eldorados. Contam com maior tolerância.

Dubai é o exemplo mais radiante desses eldorados, com sua arquitetura monumental, centro financeiro hipermoderno, num modelo econômico criado e defendido pelas monarquias petroleiras do Golfo Pérsico. Mas o que chama mais a atenção é Dakota do Sul. 

Enquanto combatem os paraísos fiscais no exterior, os EUA toleram a existência de zonas livres de impostos com pouca transparência também em Delaware, o estado do presidente Joe Biden, Nevada e Wyoming

Dakota do Sul, um pequeno estado conservador do Meio-Oeste, permite s criação de trustes com garantia de anonimato. Num contrato de truste, quem instituiu passa um bem de sua propriedade a outra pessoa, um trustee, que deve cumprir a finalidade determinada pelo instituidor. É uma maneira de um rico se livrar de partes seu patrimônio no papel transferindo para pessoas de confiança. Pode ser uma forma de ocultar patrimônio.

Num mundo com dívidas públicas inchadas para fazer frente à pandemia e uma desigualdade social crescente agravada pela doença do coronavírus, os paraísos fiscais são um desafio para aumentar a carga fiscal dos mais ricos.

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