terça-feira, 19 de outubro de 2021

Primeiro secretário de Estado negro dos EUA morre de covid-19

Colin Powell foi um dos generais mais laureados da história dos Estados Unidos, mas traiu a si mesmo ao defender a intervenção militar no Iraque no Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 2003, sob a falsa alegação de que o ditador Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Morreu hoje, aos 84 anos, de complicações da doença do coronavírus, com mieloma múltiplo, um tipo de câncer, e mal de Alzheimer, lamentando a mancha em uma carreira brilhante.

Filho de imigrantes jamaicanos, Colin Luther Powell nasceu em 5 de abril de 1937 no Harlem, o bairro negro de Nova York. Encarnava assim o sonho norte-americano do menino pobre e humilde que vence na vida e atinge a consagração e a glória passando pelo campo de batalha. 

Foi assessor militar e diretor de operações de uma divisão de infantaria na Guerra do Vietnã, assessor de Segurança Nacional de Ronald Reagan (1987-89), o primeiro negro a comandar o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas dos Estados Unidos (1889-93) e o primeiro secretário de Estado norte-americano negro (2001-5).

DOUTRINA POWELL

Powell ajudou a formular o pensamento estratégico dos EUA. Depois da derrota na Guerra do Vietnã, mais política do que militar, os EUA travaram a Guerra do Golfo de 1991, para expulsar os iraquianos do Kuwait, com base na Doutrina Powell: ter um objetivo político claro, usar força máxima, com a exceção de armas nucleares, para encurtar a guerra e reduzir o número de baixas entre os norte-americanos, a fim de garantir o apoio popular.

A ideia é que a Guerra do Vietnã foi perdida na batalha da opinião pública. A imagem icônica das guerras dos EUA para os norte-americanos é a volta para casa de jovens soldados em caixões enrolados na bandeira.

Em parte, a Doutrina Powell é herdeira da Doutrina Sherman. Durante a Guerra da Secessão, o general William Tecumseh Sherman, do Exército da União, que lutava para manter a unidade do país e abolir a escravatura, fez uma campanha de terra arrasada no Sul, destruindo tudo o que possa ser útil ao inimigo, inclusive água e comida. 

Há uma estátua de Sherman, o general yankee, na entrada do Central Park na esquina da Rua 59 com a 5ª Avenida, em diagonal à loja da Apple. Aparentemente, ninguém tentou derrubar.

Nas duas guerras contra Saddam Hussein, os EUA destruíram a infraestrutura de saúde pública do Iraque, com danos de longo prazo à saúde pública, com aumento da mortalidade infantil.

POMBA x FALCÕES

Durante o debate interno do governo George W. Bush (2001-9) sobre a intervenção militar no Iraque. Powell era contra a guerra. Nas imagens criadas na Crise dos Mísseis em Cuba, no auge da Guerra Fria, em 1962, Powell, depois de 35 anos de carreira militar, era a pomba.

Os senhores da guerra, os falcões, eram o vice-presidente Dick Cheney, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, o subsecretário da Defesa, Paul Wolfowitz, e os ideólogos neoconservadores que entendiam que os EUA não haviam tirado proveito da vitória na Guerra Fria. Nenhum esteve em combate.

"Se você toma um país, fica dono dele, passa a ser responsável por 25 milhões de vidas", argumentou Powell, alertando para o óbvio: os EUA não iriam governar um país árabe. Ele perdeu o debate interno para os neocons. Lamentava não ter sido mais incisivo. Talvez por disciplina militar, decide apoiar o presidente.

Em 24 de fevereiro de 2001, no início do governo, antes dos atentados terroristas, Powell declarou à imprensa que as sanções impostas pela ONU haviam evitado o desenvolvimento de qualquer arma de destruição em massa pelo Iraque.

Como chefe da diplomacia norte-americana, tinha de articular a aliança internacional, com a oposição de aliados na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) como a Alemanha e a França, ambas membros do Conselho de Segurança.

MENTIRAS NA ONU

Em 5 de fevereiro de 2003, durante uma sessão plenária do Conselho de Segurança da ONU a nível de chanceler, Powell defendeu a decisão de ir à guerra afirmando haver provas de que Saddam tinha armas biológicas e capacidade de produzir mais. Citou 25 mil litros de antrax. 

Um caminhão de 25 mil litros se compra no Mercado Livre, sem juros. Com o embargo da ONU, antes da invasão americana, 800 caminhões cruzavam por dia a fronteira entre Síria e Iraque, principalmente para contrabandear petróleo. Daria para levar muito mais armas químicas ou biológicas, mas nada foi encontrado.

O dossiê de inteligência que Powell usou na ONU foi desmascarado pelo Channel 4 da televisão britânica como plagiado de um estudante de pós-graduação nos EUA. Não era nenhuma informação sólida de espionagem do serviço secreto. Ele disse ter recebido em cima da hora.

A resolução para autorizar a guerra não foi apresentada ao Conselho de Segurança porque a derrota era certa, assim como possíveis vetos da China, da França e da Rússia.

Quando Saddam caiu, o Departamento de Estado apresentou a Bush um plano de 250 páginas para administrar a ocupação, mas o presidente optou por um projeto muito mais simples feito pelo Pentágono. Os neocons acreditavam que os soldados norte-americanos seriam recebidos como heróis libertadores e que o petróleo iraquiano bancaria a reconstrução.

INVASÃO FRACASSADA

Na prática, ao derrubar Saddam, que nada teve a ver com os atentados de 11 de setembro de 2001, e entregar o poder à maioria árabe xiita, os EUA fomentaram uma revolta dos árabes sunitas, que mandavam no que hoje é o Iraque há mais de 300 anos.

Neste vácuo de poder de um Estado em colapso, a rede terrorista Al Caeda se infiltra no Iraque. Al Caeda no Iraque vira Estado Islâmico do Iraque e, na guerra civil da Síria, Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Os EUA haviam se retirado do Iraque em 2011. Voltam em 5 de agosto de 2014 para a guerra contra o Estado Islâmico.

A fracassada intervenção no Iraque mina o poder e a autoridade moral dos EUA no mundo. Abala e enfraquece a ordem internacional criada no pós-guerra sob a inspiração do presidente Franklin Roosevelt (1933-45). 

Os neocons que atropelaram Powell queriam submeter a resolução ao Conselho de Segurança e ir à guerra ignorando o resultado para desmoralizar a ONU, num gesto de suprema arrogância e prepotência imperiais não vistas desde o Vietnã que ajudaram a queimar o capital político acumulado com a vitória na Guerra Fria. O unipolarismo norte-americano.

DESCULPANDO O INDESCULPÁVEL

Powell tem outra mancha na sua biografia. Era acusado de acobertar o Massacre My Lai. Na maior matança de civis da Guerra do Vietnã (1955-75), em 16 de março de 1968, soldados dos EUA mataram 504 pessoas, inclusive 182 mulheres, entre elas 17 grávidas, e 173 crianças.

Encarregado do inquérito sobre uma carta enviada por um soldado denunciando o massacre, Powell escreveu: "Em refutação direta a esta descrição, está o fato de que as relações entre os soldados norte-americanos e o povo vietnamita são excelentes."

Em entrevista a Larry King, em 2004, o general minimizou a desculpa: "Eu estava na unidade responsável por My Lai. Cheguei lá depois que My Lai aconteceu. Então, na guerra, estas coisas horríveis acontecem de vez em quando, mas precisam ser deploradas." Na época, ele não deplorou.

Nenhum comentário: