sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ataque à Líbia reabre debate sobre direito de ingerência

A intervenção militar autorizada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas para “proteger a população civil” da Líbia recolocou em discurssão o chamado “direito de ingerência”.

Escrevi um artigo, em 2000, para uma newsletter o Centro de Estudos das Américas da Universidade Cândido Mendes, do qual foi pesquisador associado, a pedido do Clovis Brigagão, sobre o direito de intervenção por razões humanitárias, a propósito das intervenções da OTAN na Bósnia e no Kossovo.

As pesquisas que fiz na época apontavam três precedentes, ainda que a razão explícita das intervenções não fosse humanitária: a Índia na guerra que levou à independência de Bangladesh, em 1971; a invasão de Uganda pela Tanzânia para depor Idi Amin, em 1977 ou 78, e a invasão do Vietnã ao Camboja, no Natal de 1978, para derrubar o regime do Khmer Vermelho.

O princípio jurídico parte da universalidade dos direitos humanos, conforme expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, e em acordos internacionais como as convenções contra genocídio e tortura.

Entre os exemplos recentes de omissões da sociedade internacional, estariam Ruanda, Srebrenica e Darfur. O ex-presidente americano Bill Clinton considera o maior fracasso de sua presidência não ter feito nada contra o genocídio em Ruanda. A causa foi a humilhação que os EUA tinham sofrido um ano antes em Mogadíscio, na Somália, no episódio mostrado no filme Falcão Negro em Perigo.

Clinton transformara uma operação humanitária do presidente George Bush sr. para combater a fome na Somália numa guerra contra os senhores da guerra somalianos sem equipar as forças dos EUA para isso.

A França, por sua vez, é acusada de proteger, na Operação Turquesa, a fuga da milícia responsável pelo genocídio em Ruanda, em 1994.

O presidente Nicolas Sarkozy foi oportunista e estaria de olho no petróleo líbio. Quando Kadafi se aproximou do Ocidente, abrindo mão de suas armas de destruição em massa e entregando os supostos responsáveis pelo atentado terrorista de Lockerbie, não fez acordo com a França, que tivera um avião explodido sobre o Níger em 1989.

Talvez Barack Obama, o primeiro presidente dos EUA de origem africana, que relutou muito em intervir, ao tomar a decisão, não quisesse ter seu governo associado a um massacre na África, o que certamente aconteceria se Kadafi ganhasse a guerra civil líbia.

É claro que a ONU não vai intervir em todas as guerras civis. As intervenções serão sempre seletivas e subordinadas a interesses nacionais, nem que seja só para manter o prestígio de antigas potências coloniais como França e Reino Unido, evitar uma onda de refugiados no Mar Mediterrâneo ou a anarquia ao Sul da Europa. Se for anarquia no Congo, no coração da África, é diferente.

Há, evidentemente, o petróleo, que sempre pesa, mas não me parece que essa seja uma guerra por petróleo. Também não concordo com essa visão cínica da esquerda, do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, do assessor presidencial Marco Aurélio Gargia, do cientista politico José Luís Fiori, do linguista Noam Chomsky e do escritor Tareq Ali, de que as razões humanitárias sejam apenas um pretexto para novas expedições coloniais.

Em artigo no jornal The Guardian em que denuncia o que chama de “vigilantismo ocidental”, Ali alega que nada está sendo feito contra os governos do Bahrein e do Iêmen, que também estão massacrando seus manifestantes. Reclama que ninguém falou em impor uma zona de proibição de voo. Mas esses países não estão bombardeando civis com a Força Aérea. 


A escala dos ataques não tem comparação. Kadafi chamou os rebeldes líbios de ratos e baratas, desumanizando seu próprio povo para esmagá-lo.

Quando abre manchete para "outra guerra", a capa da edição brasileira do Monde Diplomatique endossa a tese esquerdista de que o capitalismo precisa de um estado de guerra permanente para subjugar os povos. Neste caso, não faz sentido porque se trata de uma intervenção para evitar que as revoluções democráticas no mundo árabe sejam abortadas à força.

Não houve dedo do Ocidente na eclosão das revoluções árabes. Ao contrário, as potências ocidentais estavam satisfeitas com o status quo. Kadafi é um velho herói da esquerda dita revolucionária. Os presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Nicarágua, Daniel Ortega, que recebeu centenas de milhões de dólares do ditador líbio, se levantam em sua defesa, o que é sintomático.

É um terreno pantanoso, mas o nazismo e o Holocausto deram um golpe no princípio de soberania nacional. Isso não significa que os direitos individuais estejam acima dos direitos dos Estados, mas há uma tensão evidente que terá de ser mediada pelo Conselho de Segurança. O direito de veto e o soberanismo da China e da Rússia certamente porão um freio no direito de ingerência.

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