quarta-feira, 3 de maio de 2006

Desintegração sul-americana abala política externa de Lula

Com a estatização do petróleo e do gás pela Bolívia,
onde a Petrobrás investiu US$ 1 bilhão nos últimos 10
anos, a política externa do governo Luiz Inácio Lula
da Silva de promover a integração da América do Sul
sob a liderança brasileira sofre mais um duro golpe.

Há conflitos entre Venezuela e Colômbia, Venezuela e
Peru, Argentina e Uruguai, e agora entre Brasil e
Bolívia. O neopopulismo mina o sonho da integração
regional.

Enquanto o presidente socialista da Bolívia, o líder
indígena Evo Morales, nacionaliza os recursos naturais
de seu pais, o presidente do Uruguai, Tabaré Vásquez,
manifesta intenção de deixar o Mercosul. O bloco foi
incapaz de resolver a chamada guerra das papeleiras,
o conflito com a Argentina em torno da construção de
duas fábricas de papel e celulose na margem oriental
do Rio Uruguai.

Surpreendido com a agressividade política de Morales,
que mandou o Exército Boliviano ocupar as instalações
das empresas transnacionais, Lula, que esperava um
tratamento diferente para a Petrobrás, inclusive por
ter apoiado a candidatura do líder indígena, deve se
reunir nesta quinta-feira com os presidentes da
Argentina, Nestor Kirchner; da Bolívia, Evo Morales; e da Venezuela, Hugo
Chávez, em busca de uma solução.

Na segunda-feira, Dia do Trabalho, Evo Morales cumpriu sua promessa de campanha e nacionalizou ontem as jazidas de petróleo e gás da Bolívia. Com a estatização, a empresa estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos assume o controle dos campos de exploração. As 26 companhias estrangeiras em atividade no país terão 180 dias para renegociar seus contratos.

É a terceira vez que a Bolívia nacionaliza seus recursos naturais. Nas duas ocasiões anteriores, em 1937 e em 1969, o país vivia sob ditaduras militares. Entre as empresas estrangeiras atingidas, estão a Petrobrás, a hispano-argentina Repsol YPF, as britânicas British Petroleum e British Gas, e a francesa total.

A decisão afeta duramente a Petrobrás, maior empresa em atividade na Bolívia, onde é responsável por 18% do produto interno bruto, 24% da arrecadação de impostos, 45% da produção de gás e 100% do refino de petróleo. Desde 1996, a Petrobrás e suas associadas investiram US$ 1,5 bilhão na Bolívia, quadruplicando as reservas comprovadas do país. A estatal brasileira explora os dois principais campos de gás bolivianos e duas refinarias.

"Chegou a hora, o dia esperado, um dia histórico em que a Bolívia retoma o controle total de seus recursos naturais", afirmou o presidente. “Acabou o saque dos recursos naturais bolivianos por estrangeiros”, acrescentou, numa linguagem de esquerda dos anos 60 e 70, como se todas as companhias estrangeiras estivessem lá somente para explorar os bolivianos.

SENSO DE INJUSTIÇA HISTÓRICA
País mais pobre da América do Sul, a Bolívia, e especialmente a maioria indígena de sua população, tem um senso de injustiça histórica. Em 1543, foi descoberto por acaso que o Cerro Rico de Potosí era uma montanha de prata. No início do século 17, esta cidade era das mais ricas do Império Espanhol. A maioria da prata que foi da América para a Espanha foi extraída de Potosí pelos índios bolivianos, que nunca se beneficiaram disso.

Quando a prata se esgotou, no século 19, começou o ciclo do estanho, que fez a riqueza da família Patiño sem que, mais uma vez, o povo boliviano ganhasse com a riqueza do país. Estes exemplos são sempre citados para dizer que agora será diferente.

A Bolívia tem a segunda maior reserva de gás da América do Sul, depois da Venezuela, e produz 40 mil barris de petróleo por dia. O gás é visto como a última chance de alavancar o desenvolvimento econômico deste país de 9 milhões de habitantes, em sua maoria miseráveis.

Durante o período de transição de 180 dias, o governo ficará com 82% da renda e as empresas com 18%, "porcentagem que cobre os custos de operação e amortização dos investimentos", declarou Morales, ignorando que seu país precisa de capital e tecnologia estrangeiros. Sua proposta é transformar as transnacionais em prestadoras de serviços, o que até agora a Petrobrás rejeita.

O vice-presidente Álvaro García Linera disse que nos anos 90 a Bolívia ganhava US$ 140 milhões por ano a exploração do gás. Com a nova Lei de Hidrocarbonetos aprovada no ano passado, esta renda cresceu para US$ 460 milhões. A expectativa do governo é que ganhe US$ 780 milhões no próximo. Mas os analistas entendem que a Bolívia não tem nem capital nem tecnologia para explorar suas reservas de petróleo e gás, o que pode atrapalhar os cálculos do governo.

A decisão é um duro golpe na política latino-americanista do governo Lula, que apostou numa aliança com parceiros que não cumprem contratos. Há poucos dias, a siderúrgica EBX, do empresário Eike Batista, foi obrigada a abandonar a Bolívia, onde estava construindo uma siderúrgica. Mas não se esperava que a Petrobrás recebesse o mesmo tratamento por causa de seu peso. Foi tratada como qualquer empresa estrangeira.

Pior ainda, Morales fez o anúncio num campo da Petrobrás ocupado ostensivamente pelo Exército Boliviano, um dos mais incompetentes da região, que perdeu todas as guerras que disputou, ocupou os campos de petróleo e gás. Para Francisco Carlos Teixeira, professor de História Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi uma jogada eleitoreira, visando às eleições de 2 de julho, quando sera eleita uma Assembléia Constituinte para “refundar” o Estado boliviano, a exemplo do que Chávez fez na Venezuela.

CHÁVEZ FAZ ESCOLA
O decreto de nacionalização do gás e do petróleo bolivianos foi assinado depois de um fim de semana em que Morales se reuniu com Chávez e com o ditador cubano, Fidel Castro, para assinar um acordo comercial chamado de Alternativa Bolivarista para as Américas (Alba), uma iniciativa de Chávez para se contrapor ao projeto Americano de criar a Área de Livre Comércio das Américas.

Na quarta-feira passada, numa reunião de cúpula em S. Paulo, Lula e Kirchner criticaram Chávez por ter se reunido com Morales e com os presidentes do Paraguai e do Uruguai sem a presença de Brasil e Argentina. Entre as críticas, houve queixas de que Chávez estaria incentivando Morales a estatizar os recursos naturais.

Evo Morales, o primeiro índio a governar a Bolívia, surgiu na política como presidente do sindicato dos produtores de folha de coca, combatendo a erradicação defendida pelos Estados Unidos. Daí se tornou dirigente do Movimento ao Socialismo. Nos últimos anos, liderou os movimentos populares que derrubaram os presidentes González Sánchez de Losada, em 2003, e Carlos Mesa, em 2005.

Em dezembro de 2005, Morales foi eleito no primeiro turno, com o apoio dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e de Cuba, Fidel Castro, com quem fez um acordo na semana passada para criar uma alternativa ao projeto americano de criar a Área de Livre Comércio das Américas. Ao estatizar o petróleo e o gás, ele segue os passos de Chávez, que está exigindo que as empresas estrangeiras que atuam na Venezuela façam contratos em que a estatal Petroleos de Venezuela S. A. (PdVSA) tenha participação de 60%.

A discussão sobre como utilizar os recursos naturais latino-americanos para promover o desenvolvimento e combater a exclusão social é um passo importante para a democratização econômica de uma das regiões com a pior distribuição de riqueza do mundo. Mas o velho populismo nacionalista que atrapalhou o desenvolvimento econômico do subcontinente no século passado está longe de ser uma solução no mundo globalizado.

Há duas décadas, durante a crise da dívida externa, quando a região estava marginalizada da economia internacional e era rapidamente superada pela Ásia, Brasil e Argentina lançaram o Mercosul, até hoje o projeto de integração regional mais bem-sucedido da América Latina. A idéia era somar as forças de países de porte médio com as pequenas nações para ter uma voz mais forte no cenário internacional.

Desde que tomou posse, Lula trabalha pela união do Mercosul com a Comunidade Andina de Nações para criar a Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN). Neste processo, desdenhou do aprofundamento do Mercosul, afastando-se do presidente Kirchner, mais preocupado com benefícios econômicos para a Argentina, recém-saída da pior crise econômica de um país relativamente desenvolvido na era moderna.

Além disso, alienou os sócios menores, Paraguai e Uruguai, que se aproximaram dos EUA. Em Washington, o presidente uruguaio, Tabaré Vásquez, disse ao jornal argentino La Nación que está preparando a retirada de seu país do Mercosul, onde ficaria apenas como membro associado, como o Chile, a Bolívia e o Peru.

OUTROS CONFLITOS REGIONAIS
O Uruguai optou claramente pelo modelo de inserção internacional do Chile. Quer fazer parte do Mercosul apenas como zona de livre comércio, sem união aduaneira (que implica a adoção de uma tarifa externa comum para importações de fora do bloco) nem Mercado comum – e fazer um acordo de livre comércio com os EUA. Pelos calculus do governo esquerdista uruguaio, isto permitiria dobrar as exportações em dois anos.

A ‘guerra das papeleiras’ foi a gota d’água. O Uruguai contava com a mediação do Mercosul mas o presidente Lula conversou informalmente com a presidente da Finlândia e o governo argentino vetou qualquer mediação internacional. Se um bloco regional não serve para resolver conflitos entre os países-membros, como faz a União Européia, e não está conseguindo promover o desenvolvimento econômico, Vásquez não vê sentido em participar.

Se a situação do Mercosul é difícil, muito pior é a da Comunidade Andina.

Colômbia e Venezuela vivem sob tensão porque o presidente colombiano Álvaro Uribe é o maior aliado dos EUA na América do Sul e Chávez o maior inimigo. Uribe acusa Chávez de apoiar as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, hoje envolvidas com o tráfico de drogas, que financia uma guerra civil sem fim, embora ressalve-se que as causas sociais que originaram o conflito permanecessem.

Como a Colômbia e o Peru assinaram acordos de livre comércio com os EUA, Chávez anunciou a retirada da Venezuela, dizendo que a CAN está morta. Em seu tiroteio verbal, Chávez acusou o governo peruano de ser fantoche dos EUA e prometeu retirar seu embaixador de Lima se o ex-presidente Alan García for eleito no segundo turno da eleição presidencial, em 28 de maio. Chávez apóia Ollanta Humala, um ex-oficial golpista como ele.

No momento, o Brasil é dependente do gás natural boliviano para o abastecimento de indústrias no Sul e no Sudeste no Brasil, e também do gás natural usado em veículos, sobretudo em taxis. Pelo menos, terá de pagar mais pelo gás boliviano.

Em nota, o governo brasileiro reconheceu o direito boliviano de dispor de seus recursos naturais. Isto segue a linha da retórica esquerdista do governo Lula, muito distante da prática. Mas pode ser uma atitude de cautela, para manter o Brasil e a Petrobrás na mesa de negociações à espera de melhores condições para negociar.

Como a Bolívia representa muito pouco, menos de 2%, das operações da Petrobrás, a Bolsa de S. Paulo e as ações da estatal subiram ontem. Mas a onda nacionalpopulista sul-americana abala fortemente a política externa de Lula.

Para pressionar a Petrobrás, a Bolívia acena com a possibilidade de fechar um acordo energético com a China, sedenta de energia para sustentar seu extraordinário crescimento econômico.

Nos últimos anos, a América Latina tem se beneficiado do aumento dos preços dos produtos primários, devido sobretudo ao surto de desenvolvimento da Ásia, especialmente da China e da Índia. Ao se perder em devaneios populistas, mais uma vez a América Latina corre o risco de perder oportunidades históricas.

2 comentários:

Marco Aurélio disse...

Nelson

Evo morales é um cara controverso. Será que quer o bem da Bolívia estatizando as reservas de gás natural e petróleo ou quer aparecer na mídia internacional e reverter a queda de popularidade dos últimos meses?

Um abraço

Marco Aurélio

Nelson Franco Jobim disse...

Morales jogou para a platéia ao mandar o Exército ocupar instalações da Petrobrás. Precisa de maioria na Assembléia Constituinte a ser eleita em 2 de julho.