terça-feira, 5 de dezembro de 2017

O que é o fascismo?, na visão de Umberto Eco

O termo fascista pode ser usado genericamente nas mais diferentes situações porque é possível eliminar um ou mais aspectos de um regime fascista e ainda assim caracterizá-lo como tal, afirmou o escritor e filósofo italiano Umberto Eco (1932-2016). 

Os regimes totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial não devem reaparecer com a mesma forma em circunstâncias históricas diferentes, entende Eco. Mas, com as crises econômica e de refugiados, e o ressurgimento do ultranacionalismo, o fantasma do neofascismo assombra a Europa, os Estados Unidos sob Donald Trump e os debates políticos nas redes sociais no mundo inteiro.

“O fascismo de Benito Mussolini era baseado no líder carismático, no corporativismo e na ideia do ‘destino fatídico de Roma’, na vontade imperialista de conquistar novas terras, no nacionalismo inflamatório, no ideal de uma nação inteira de camisas-pretas mobilizados, na rejeição da democracia parlamentar e no antissemitismo”, descreveu o pensador italiano.

Em Cinco Escritos Morais, publicado no Brasil em 2002, Eco considera os partidos sucessores do fascismo na Itália muito diferentes do Fascismo original: “Admito que a Aliança Nacional, que surgiu do Movimento Social Italiano (MSI), é um partido de direita, mas tem pouco a ver com o velho Fascismo”, comparou o intelectual.

“Da mesma forma, muito embora eu esteja preocupado com os vários movimentos pró-nazistas ativos aqui e ali na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o Nazismo, em sua forma original, esteja para reaparecer como um movimento envolvendo uma nação inteira”, observa o escritor, autor de clássicos como O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault.

Esses regimes desapareceram com a derrota na Segunda Guerra Mundial. Suas ideologias foram "criticadas e deslegitimadas”. Mas “atrás de um regime e sua ideologia, há uma maneira de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e impulsos insondáveis”.

O escritor romeno Eugène Ionescu, mestre do teatro do absurdo, dizia que só as palavras contam e o resto é conversa fiada. “Os hábitos linguísticos com frequência são sintomas de sentimentos não expressados”, ponderou o autor.

Eco foi educado na Juventude Fascista. Conheceu o fascismo antes da liberdade. Aos dez anos, em 1942, ganhou um prêmio por escrever uma redação sob o tema Devemos Morrer pela Glória de Mussolini e o Destino Imortal da Itália? Sua resposta foi sim, em estilo exaltação.

No ano seguinte, ele descobriu o sentido da palavra liberdade. O regime fascista caiu em 1943, mas foi restaurado pelos nazistas. “Passei dois anos da minha juventude cercado pelas tropas de elite nazistas das SS, por fascistas e por guerrilheiros da resistência atirando uns nos outros - e aprendi a evitar as balas.”

A vitória na Segunda Guerra Mundial foi definida pelo presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, como a derrota do Fascismo e do totalitarismo que encarnava.

Na opinião de Eco, o livro de Hitler “Mein Kampf (Minha Luta) é um manifesto completo e um programa político. O Nazismo tinha uma teoria da raça e do arianismo, uma noção precisa de arte degenerada, uma filosofia da vontade de poder e do Super-Homem.

“O Nazismo era decididamente anticristão e neopagão, assim como o materialismo dialético de Stalin (a ideologia oficial do marxismo soviético) era claramente materialista e ateísta”, acrescentou o pensador.

“Mussolini não tinha filosofia: tudo o que tinha era retórica. Começou como um militante ateísta para depois fazer um acordo com a Igreja e um consórcio com os bispos que benziam bandeiras nazistas", recordou. “O fascismo italiano foi a primeira ditadura de direita a dominar um país europeu, o primeiro a criar uma liturgia militar, um folclore e até um estilo de vestuário.”

Além da Itália e da Alemanha, nos anos 1930s o movimento fascista chegou a Inglaterra, Estônia, Lituânia, Letônia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária, Grécia, Iugoslávia, Portugal, Espanha, Noruega e à America Latina. O fascismo prometeu mudanças sociais capazes de neutralizar a ameaça comunista.

“O fascismo não tem quintessência, não tem mesmo uma simples essência. É uma forma de totalitarismo difusa. Não é uma ideologia monolítica, mas mais uma colagem de diversas ideias políticas e filosóficas, um emaranhado de contradições”, argumentou Eco.

“É possível conceber um movimento totalitário que consiga reconciliar monarquia e revolução, o Exército Real e a milícia privada de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e um sistema estatal de educação que exaltava a violência, o controle total e o livre mercado?”, pergunta o filósofo. E arremata: “O Partido Fascista nasceu proclamando uma nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos proprietários de terras mais conservadores”, temerosos do comunismo.

Na Itália, até uma corrente artística de vanguarda, o futurismo, apoiou o Fascismo e seu culto da juventude. “Isso não significa que o Fascismo italiano fosse tolerante”, ressalva Umberto Eco. O filósofo e intelectual comunista Antonio “Gramsci ficou na prisão até sua morte”. O deputado socialista Giacomo “Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a imprensa livre suprimida, os sindicatos dissolvidos e os presos políticos confinados em ilhas distantes.”

Apesar desta confusão, Eco considera possível fazer uma lista das características do que chama de “fascismo eterno”. Muitas são exclusivas, outras são típicas de outras formas de despotismo e fanatismo.

1.     A primeira característica do fascismo eterno é o culto da tradição. O tradicionalismo é anterior ao fascismo. Foi típico na reação do catolicismo à Revolução Francesa. A verdade já foi divulgada de uma vez por todas. Só cabe aos homens reinterpretar sua mensagem obscura.

2.     O tradicionalismo implica a rejeição ao modernismo. Tanto Nazistas quanto Fascistas cultuavam a tecnologia, mas o Nazismo é baseado em “sangue e solo”. O Iluminismo e a Idade da Razão eram vistos como a origem da depravação do mundo moderno.

3.     A irracionalidade leva ao culto da ação pela ação. A ação é bonita em si mesma. Deve ser implementada antes de qualquer reflexão. O pensamento emascula. A cultura é suspeita. “Quando ouço falar em cultura, puxo meu revólver”, diz uma frase atribuída ao ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels. Outras expressões derrogatórias são “malditos intelectuais”, “cabeças de ovo”, “radicais esnobes”, “as universidades são um antro de comunistas”. A suspeição sobre a vida intelectual sempre foi um sintoma do fascismo eterno. Os intelectuais oficiais fascistas acusavam a cultura moderna e a intelligentsia liberal de abandonar os valores tradicionais.

4.     Nenhum autoritarismo pode aceitar a crítica. O espírito crítico faz distinções, um sinal da modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica vê o dissenso como uma maneira de promover o avanço do conhecimento. Para o fascismo, o dissenso é uma traição.

5.     O dissenso é acima de tudo um sinal de diversidade. O fascismo busca um consenso explorando e exacerbando o medo natural do diferente. Seu primeiro movimento é contra supostos invasores e traidores da tradição. O fascismo é portanto essencialmente racista.

6.     O fascismo nasceu da frustração social e individual. Apela às classes médias frustradas, inquietas por causa de alguma crise econômica, da humilhação política e da ameaça vinda de baixo. “Nos nossos dias, quando os velhos proletários se tornam pequenos burgueses, o fascismo vai encontrar audiência nesta nova maioria.”

7.     ultranacionalismo é um elemento central do fascismo. Para quem não tem uma identidade social, o fascismo vai dizer que único privilégio é ter nascido naquele país. Em muitos casos, a identidade nacional é construída em oposição a um inimigo. Na raiz da psicologia do fascismo, está a obsessão com conspirações, de preferência internacionais. Os militantes devem se sentir como se estivessem cercados. Os judeus foram os bodes expiatórios durante séculos. Com o terrorismo, os muçulmanos viraram o alvo predileto dos neofascistas e, mais recentemente, os refugiados e imigrantes.

8.     Os militantes devem se sentir humilhados pela riqueza e o poder do inimigo. O inimigo é alternadamente muito forte ou muito fraco. Eco acreditava que “os regimes fascistas estão condenados a perder suas guerras porque são constitucionalmente incapazes de avaliar objetivamente a força do inimigo.”

9.     O fascismo não é uma luta pela vida, é “uma vida para a luta”. A vida é uma guerra permanente. Assim, o pacifismo é visto como uma rendição ao inimigo. Como o inimigo precisa ser derrotado, tem de haver uma última batalha ou solução final, o nome que os nazistas deram ao genocídio dos judeus. Depois, viria uma época de paz e prosperidade, o que contradiz o princípio da guerra permanente. Nenhum líder fascista foi capaz de resolver esta contradição e a era dourada nunca chegou.

10.  O elitismo é típico de todas as ideologias reacionárias, constatou Umberto Eco. É aristocrático, o que implica um desprezo pelos fracos. O fascismo criou um “elitismo popular”: cada indivíduo pertence ao melhor povo do mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos deste povo e todo cidadão pode se tornar membro do partido. Como não pode haver patrícios sem plebeus e o poder foi conquistado à força, o poder do líder depende da fraqueza das massas, que merecem um “dominador”, argumentou o filósofo. Como o regime e o partido são organizados por hierarquia de inspiração militar, cada subordinado olha de cima para baixo para seus inferiores.

11.  Todos são treinados para virar heróis. Na mitologia, os heróis são seres excepcionais. No fascismo, o heroísmo é a norma. O culto do heroísmo leva ao culto da morte. “Viva a morte!”, como bradavam os falangistas espanhóis liderados pelo generalíssimo Francisco Franco. A morte é a maior recompensa para uma vida heroica.

12.  Como a guerra permanente e o heroísmo são tarefas difíceis demais, os fascistas reorientam sua vontade política para outras questões, como o comportamento sexual. O fascista é intrinsecamente machista. Despreza as mulheres e condena sem qualquer tolerância relações não heterossexuais, da castidade à homossexualidade.

13.  O fascismo se baseia no “populismo quantitativo”. Numa democracia, os cidadãos têm direitos individuais, mas o conjunto dos cidadãos organizados tem um impacto muito maior. No fascismo, os indivíduos não têm direitos. O povo é uma entidade monolítica que expressa uma “vontade coletiva”. Como em grandes coletividades, as opiniões divergem e não há uma vontade comum, cabe ao líder “interpretrar” os desejos do povo, que tem uma presença meramente teatral. Eco advertiu para o risco de “pesquisas qualitativas de TV” e do “populismo via Internet”, em que a reação emocional de um grupo seleto seja apresentada como a “voz do povo”. O Fascismo era contra os “governos parlamentares corruptos”. Toda vez que se coloca em dúvida a legitimidade do Parlamento porque não reflete mais a “voz do povo” há um viés autoritário e antidemocrático do líder que procura o contato direto com as massas.

14.  O fascismo usa a novilíngua. A palavra foi inventada pelo escritor britânico George Orwell no livro 1984. Era a língua oficial de uma ditadura instalada através da televisão, que espionava as casas de todos e mudava o sentido das palavras no "duplipensar", de acordo com a vontade do supremo líder, o Grande Irmão, que inspirou o programa de TV BBB. “Todos os textos acadêmicos fascistas e nazistas são baseados num vocabulário pobre e numa sintaxe elementar, com o objetivo de limitar os instrumentos disponíveis para um raciocínio crítico complexo.” A novilíngua, alertou o pensador italiano, também está em outras linguagens, inclusive na TV.

Quando o fascismo caiu e Mussolini foi preso, em 27 de julho de 1943, Eco começou a descobrir que a Itália tinha vários partidos políticos e voltaram direitos fundamentais: as liberdades de expressão, de imprensa e de associação para fins pacíficos. A Alemanha ainda tirou Mussolini da prisão e instalou um regime-fantoche sob o comando do Duce, a República Social Italiana, em áreas sob o controle nazista no Norte da Itália. Mas a liberdade estava a caminho.

“Renasci como um homem livre ocidental”, lembrava Umberto Eco. Mas, advertiu, “o fascismo eterno ainda ronda, às vezes em trajes civis” e “pode voltar sob os mais inocentes disfarces”. “Não podemos esquecer.”

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