domingo, 31 de dezembro de 2017

Era Trump e consolidação da China grande potência marcam 2017

Este foi um ano de mudanças profundas no cenário internacional. A posse do presidente Donald Trump traz uma ampla inflexão na política interna dos Estados Unidos num momento em que a China, segunda maior economia do mundo rumo ao topo, se consolida como grande potência. O califado do Estado Islâmico desapareceu, mas não a ameaça do terrorismo de extremistas muçulmanos, e o desafio das armas nucleares da Coreia do Norte se tornou real.

"Foi um ano muito rico politicamente", observou o professor Paulo Sérgio Wrobel, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). "Com a posse de Trump, estamos assistindo a uma mudança épica na política externa americana."

EUA
A maior crítica é à ruptura com a ordem internacional liberal criada depois da Segunda Guerra Mundial sob a inspiração do presidente Franklin Delano Roosevelt (1933-45), ao multilateralismo ameaçado pela política de Trump de "Primeiro, os EUA".

Na opinião do pesquisador, o atual presidente "herdou uma política externa fracassada" do governo Barack Obama (2009-17): más relações com a China, as relações com a Rússia no pior estado desde o fim da Guerra Fria, caos no Oriente Médio, omissão na guerra civil da Síria quando o ditador Bachar Assad cruzou a linha vermelha ao usar armas químicas, a hesitação no Egito durante a Primavera Árabe. "O legado é pobre."

Wrobel questiona inclusive o acordo nuclear dos EUA, das outras grandes potências do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da Alemanha com o Irã para desarmar o programa nuclear iraniano: "O acordo posterga, não acaba com o programa nuclear iraniano. Abre a possibilidade de que o Irã tenha uma influência maior no Oriente Médio. As pressões diminuíram muito", observa.

"O Irã é um país sofisticado e inteligente. Apenas adiou uma situação. Não mudou o comportamento nem abriu mão da tecnologia. Ficou mais agressivo em função desse acordo", alertou. "O acordo prevê revisões semestrais. Em janeiro, o Congresso dos EUA terá de se manifestar. Para Israel, é uma questão de sobrevivência."

Uma principais das acusações a Trump é que estaria recuando no plano internacional, diminuindo a presença e a importância dos EUA no mundo. Wrobel entende que "o retraimento começa com Obama. Os governos Bill Clinton e George W. Bush não recuaram. A secretária de Estado de Clinton, Madeleine Albright, falava dos EUA como a potência indispensável."

Trump errou, analisa o professor Paulo Wrobel, ao retirar os EUA da Parceria Transpacífica, um acordo de liberalização comercial assinado por 12 países depois de longas negociações concluídas no governo Obama, porque tem "uma visão mercantilista, antiga e retrógrada".

No início do ano, durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, o presidente da China, Xi Jinping, se apresentou como "um campeão do livre comércio. A economia chinesa é fechada para caramba. É difícil fazer negócios na China."

Sob Trump, "a reafirmação do poder americano faz mais sentido para manter o poderio imperial do que as políticas de Obama", comentou o professor. "Ao se aproximar da Arábia Saudita, Trump tenta manter os EUA como grande potência no Oriente Médio", depois do recuo de Obama.

Quanto à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o professor entende que Trump está certo ao cobrar mais gastos dos aliados da Europa: "A Alemanha gasta 1% do PIB (produto interno bruto) com defesa, quando a regra é pelo menos 2%. Só Reino Unido, França, Grécia e Turquia gastam acima de 2%. Quem subsidia a paz na Europa? O contribuinte americano."

CHINA
Na China, Wrobel observa "uma reafirmação absurda do poder de Xi Jinping. O país vive a maior onda de repressão desde o Massacre na Praça da Paz Celestial, em 1989. A legitimidade vem do crescimento econômico. Xi afirmou as ambições de grande potência da China: Mar do Sul da China, gastos militares de quase US$ 200 bilhões por ano, poderio aeronaval, o novo Caminho da Seda..."

A política externa chinesa "deixou ser comercial e econômica para se tornar uma política de grande potência. Começa a ter custos. A Coreia do Norte é um exemplo. O corte de 90% nas importações de petróleo é o maior aperto econômico da história. Vai demorar, mas vai surtir efeito.  A Rússia estava ajudando a furar o embargo, mas também votou a favor no Conselho de Segurança da ONU."

Como nenhum dos lados pode atacar, a expectativa em relação à Coreia do Norte é de manutenção do status quo, frágil e instável.

Ao consolidar a ditadura de um homem só, em contraste com a liderança colegiada imposta por Deng Xiaoping, o grande arquiteto das reformas modernizadoras, Xi Jinping não compromete a ascensão da China à superpotência.

"O poder de Xi fortalece o projeto de grande potência da China", afirma o professor. "Ele tem o respaldo que nenhum outro líder teve desde Deng. Tem uma personalidade forte. Seu pensamento foi inserido na Constituição", uma honra só concedida a Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping.

A China está crescendo um pouco menos de 7% ao ano e "tem tudo para continuar crescendo, apesar do excesso de produção em algumas áreas. Os próximos cinco anos devem ser como os últimos cinco anos. Não vejo grandes alterações."

RÚSSIA
"Este também foi o ano da consolidação do poder da Rússia", registra Wrobel, com a vitória das forças leais ao ditador Bachar Assad na guerra civil da Síria, onde a Rússia negocia ditando os termos de um possível acordo de paz, tolerando bombardeios israelenses e intermediando contatos entre Israel e o Irã.

Com o veto ao principal líder da oposição, Alexei Navalny, "Putin tem a reeleição praticamente garantida em março. Não há alternativa política na Rússia. É uma economia medíocre baseada em petróleo e gás natural, com forte poderio militar."

ESTADO ISLÂMICO
O fim do califado da organização terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante
"é outra grande notícia de 2017", lembrou o professor. "Certamente sobrevive como grupo terrorista. Voltou a ser um movimento ultra-radical sem pátria. Cerca de 30 mil estão voltando para casa, o que será um problema, especialmente na Europa."

A ameaça terrorista vem sobretudo de regiões em conflito e de países onde o Estado entrou em colapso: Líbano, Afeganistão, Somália, Iraque, Síria, Líbia, Mali, República Centro-Africana.

"Os atentados no Ocidente são terríveis e incomodam", ressalva o professor, "mas quase todos são no Grande Oriente Médio, que inclui Afeganistão e Paquistão, e no Norte da África até a região do Sahel."

SÍRIA
Com a vitória das forças leais a Assad na guerra civil da Síria, a milícia extremista xiita libanesa Hesbolá (Partido de Deus) se consolidou como força militar. "Está armado até os dentes. A questão é quando haverá guerra contra Israel. A guerra civil na Síria adiou os conflitos com Israel."

O Estado-Maior israelense teme o Irã e seus aliados na guerra civil síria, como o Hesbolá, ao norte; e o Estado Islâmico, ao sul. A milícia jihadista Província do Sinai do Estado Islâmico é o grupo radical mais ativo na Península do Sinai.

EUROPA
Na Europa, o risco de vitória de partidos neofascistas depois do plebiscito que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) e do triunfo de Trump nos EUA não se confirmou. A ultradireita perdeu na Holanda, na França e na eleição presidencial na Áustria. Mas voltou ao Parlamento da Alemanha pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, com os 94 da Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido antieuro, anti-imigração e antimuçulmano.

A França elegeu presidente Emmanuel Macron, aos 39 anos, o mais jovem chefe de Estado francês desde Napoleão Bonaparte (1799-1815). "Macron tem uma agenda positiva, europeia, é bastante ambicioso", revigora a UE num momento de indefinição na Alemanha com uma eleição indecisiva, em setembro deste ano. A chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel ainda luta para formar o que provavelmente será seu último governo.

Ao mesmo tempo, a Polônia, a Hungria, a República Tcheca e a Eslováquia têm governos bastante conservadores e antieuropeus, constatou o pesquisador. "As forças nacionalistas que quase destruíram o continente em duas guerras mundiais não foram superadas pela UE."

Marine Le Pen obteve 21,3% dos votos no primeiro turno e 34% no segundo. A AfD conquistou 20% dos votos na antiga Alemanha Oriental. "O movimento pela independência da Catalunha é mais uma volta do nacionalismo", avaliou.

"O neofascismo é fruto da crise econômica e principalmente da onda de refugiados e imigrantes. Na Brexit e na Alemanha, a questão dos refugiados e imigrantes foi fundamental. A eleição de Trump também trouxe o tema das políticas identitárias. É uma questão política e cultural, e uma reação ao politicamente correto, que foi levado a um nível absurdo", argumentou o analista.

AMÉRICA LATINA
Com as vitórias de Pedro Pablo Kuczynski, no Peru, e de Sebastián Piñera, no Chile, depois da eleição de Mauricio Macri na Argentina, "a América Latina consolidou o fim do ciclo populista de esquerda. Acabou por causa da desgraça que foi para as economias do Brasil, da Argentina e da Venezuela. Na Bolívia, deu certo porque cresceu a partir de uma base fraca e porque Evo Morales manteve o equilíbrio fiscal", analisou Paulo Wrobel.

"O caso do Peru é meio bizarro. Foi um erro crasso [libertar Alberto Fujimori em troca da absolvição no processo de impeachment por causa de propina da construtora brasileira Odebrecht]. PPK se salvou, mas se queimou politicamente. O ex-presidente Alejandro Toledo está refugiado nos EUA. O ex-presidente Ollanta Humala e a mulher estão presos", acrescentou.

"A Venezuela é um dos países mais mal governados do mundo, talvez ao lado da Somália, da República Democrática do Congo, da República Centro-Africana e do Sudão do Sul. As Forças Armadas, que sustentam o regime chavista num modelo cubano, estão envolvidas com o tráfico internacional de drogas. Gostei do Brasil ter sido singularizado. Não vejo razão para fazer contatos com os militares venezuelanos, talvez com expurgados e exilados", ponderou.

ÁFRICA
"A África não é um caso perdido", entende Wrobel. "Vem crescendo a taxas superiores às da América Latina." Alguns países, como a Etiópia, que tem a segunda maior população do continente, depois da Nigéria, e o Quênia, líder da África Oriental, crescem a taxas consistentes, embora tenham problemas sérios com a democracia.

A Suprema Corte anulou a eleição presidencial no Quênia por fraude. Quando as mesmas autoridades organizaram a nova votação, o líder da oposição, Raila Odinga, abandonou a disputa, facilitando a reeleição do presidente Uhuru Kenyatta, filho do herói da independência, Jomo Kenyatta. A Etiópia é uma ditadura onde o governo é acusado de sérias violações dos direitos humanos, como censura, tortura e repressão a dissidentes.

A queda do ditador Robert Mugabe no Zimbábue depois de 37 anos é uma boa notícia, embora ele tenha sucedido pelo vice-presidente conhecido como o Crocodilo, que nomeou o ex-comandante do Exército, general Constantino Chiwenga, para vice.

Aliás, Chiwenga foi à China pedir o aval do governo chinês, grande financiador do Zimbábue diante do boicote dos países ocidentais, à deposição do ditador. A China é uma potência imperial na África.

"Angola trocou de presidente depois de 37 anos. O novo presidente, João Lourenço, vai afastando dos cargos chaves personagens leais ao ex-ditador José Eduardo dos Santos, inclusive a filha dele." Isabel dos Santos, a mulher mais rica da África, com fortuna estimada em US$ 3 bilhões, deixou a estatal de petróleo Sonangol.

A derrota do presidente Jacob Zuma na disputa pela liderança do Congresso Nacional Africano, em que o vice-presidente Cyril Ramaphosa venceu uma de suas mulheres, marca uma possível virada no combate à corrupção na África do Sul. Zuma tem muitos processos a responder. Pode cair antes das eleições de 2018.

Em vários países do mundo, inclusive o Brasil, a corrupção é apontada como o maior problema da governança e da drenagem dos recursos públicos, o que Wrobel considera positivo: "Há uma crise de representatividade, mas não há alternativa à democracia. É preciso combater a ossificação e a corrupção da democracia."

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