segunda-feira, 6 de junho de 2016

Tunga considerava a política cultural uma farsa

Um dos artistas plásticos brasileiros mais bem-sucedidos internacionalmente, o pernambucano Antonio José Barros de Carvalho e Mello Mourão, mais conhecido como Tunga, morreu hoje aos 64 anos no Rio de Janeiro, onde morava. Seu trabalho tinha a marca do inusitado. Reproduzo aqui uma entrevista feita com Tunga em maio de 2006.

Para a pesquisadora Katia Canton, Tunga mescla vida e arte, e desfetichiza a obra de arte. Foi o que se viu na instalação Laminadas Almas, apresentada no Centro Tom Jobim, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, de 13 de maio a 3 de junho.

Tunga, que já expôs nos principais centros de arte de vanguarda do mundo – como o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque; os museus do Louvre e o Jeu de Paume, em Paris; e a galeria Whitechapel, em Londres –, voltou ao Rio depois de 14 anos de sua última mostra importante na cidade.

A instalação espalhada em três salas tinha 400 mil moscas, 600 rãs, 2mil girinos, milhares de larvas e dois irmãos gêmeos posando como cientistas ao microscópio, grandes lâminas de vidros, luzes e tecidos imitando peles de ràs gigantes. Ficou ainda mais espetacular com a performance realizada pelos bailarinos da coreógrafa Lia Rodrigues, em 20 de maio. E a própria presença do público caminhando entre aquelas formas de vida lhe dava um caráter muito diferente do que se sentia ao visitar o local sem ninguém ao redor.

Nesta entrevista exclusiva, Tunga fala da obra, de sua decisão de optar pelo Jardim Botânico e critica a política cultural do país, que chamou de farsa, a censura e o dirigismo cultural, e a tentativa de forjar uma identidade cultural oficial.

JOBIM - Estou com o Tunga na instalação Almas Laminadas, no Jardim Botânico. Eu queria lhe perguntar inicialmente qual é a concepção deste trabalho, a vida, a metamorfose, o que você representa?

TUNGA - Antes de mais nada é Laminadas Almas, a ordem é inversa. É meio gótico, mas é assim.

A pergunta é um pouco vasta. Eu acho que se eu tivesse uma resposta imediata, espontânea, para ela, talvez eu não fizesse a obra desse jeito. Eu acho que o pensamento plástico é um pensamento dentro desse campo, dentro das artes plásticas, é um modo de pensar em si, e essa tradução que eu venha a fazer pode indicar algumas alusões, algumas referências à complexidade que aí se estabelece, não só visualmente mas através de outras manifestações que estão aí implícitas, como a própria existência desses animais, desses seres vivos, o som, o cheiro que você sente, as transparências, enfim, uma plêiade de recursos, de linguagens diversas
que se configuram nessa obra para tentar falar de alguma coisa.

Que coisa pode vir a ser essa coisa que está implícita? Toda vez que você inscreve uma obra em algum campo ela ressoa em vários territórios onde esse campo acolhe.

Eu acho que hoje o campo das artes plásticas é um campo de ressonância bastante intenso, bastante amplo e bastante generoso na medida em que a partir do século 20 ele começou a acolher de um modo generoso, conforme eu disse, manifestações das áreas mais diversas que se encontravam como que reduzidas a seu campo de ação, dada a natureza e o desejo de inscrição um pouco mais além daquilo que as instituições, o universo das instituições, considerando instituições como o lugar das coisas não só as relações da instituição com o Estado, o mercado. Passou a não acolher as manifestações dada uma certa radicalidade. E as artes plásticas pouco a pouco vão ocupando esse território de acolher essas outras manifestações tais e quais a dança, a música, a poesia etc. que, dado a fenômenos do mercado, fenômenos de Estados que não viabilizavam um tipo de investimento em certas direções, as artes plásticas generosamente acolheram isso. E essa complexidade veio a aumentar o trabalho das artes.

J - As artes plásticas hoje não têm aquele sentido de ficar somente observando uma pintura maravilhosa num museu, quer dizer, precisam de uma interatividade? Eu estava me lembrando da sua instalação no dia da abertura da exposição e depois quando teve a performance. Estava cheio de gente e então era outra coisa do que chegar aí e a sala estar completamente vazia, só com o som e os bichos.

T - Primeiro acho que ainda há lugar e sempre haverá lugar para uma pintura na parede. Eu não acho que um tipo de manifestação, um gênero, se é que a gente pode tentar inquirir que gênero é esse vá substituir outro nesse campo. Eu acho exatamente que a fertilidade das artes plásticas é o fato delas assumirem a diversidade de manifestações desse mesmo campo. Então esse campo se ampliou nessa medida. Pode ser tanto no espaço pictórico, com as suas convenções, quanto um pensamento que expande esse campo além do visual. É óbvio e é notório que a uma pintura se imprime o olhar do observador.

Quer dizer, não há esse território límpido, neutro e natural onde a pintura exista sem um olhar impregnado de uma cultura que se manifesta sobre ele. E acredito ainda que esses olhares se inscrevam nessas pinturas. Mesmo sendo apenas pinturas sobre telas, considerando essa superfície plana etc. e etc. com toda a intensidade dos princípios pictóricos.

Isso de um olhar se imprimir, se expressar e se tornar presente em uma obra pictórica, imagine-se numa obra escultórica ou numa obra que vá mais além disso.

Já não é só mais o olhar que se expressa, que se imprime, que se impregna nessa obra, mas todo o testemunho, uma vivência, uma experiência no sentido da palavra que transforma essa obra assim como essa obra transforma essa experiência, essa vivência desse sujeito que ali está presente. Ou seja, há que se contar, eu conto, nesse gênero de coisa que eu faço (a pensar que gênero será esse) que a presença do observador, a experiência do sujeito que ali passa mais ou menos aculturado, ou mais ou menos intencional na sua passagem faz parte dessa obra, se constitui com essa obra.

Essa obra não é só os seus elementos e a disposição dos seus elementos na heterogeneidade das linguagens ali abordadas mas também a lembrança, a memória, a perseverança, o testemunho daqueles que a viram.

J – É uma obra de arte para ser apreciada com todos os sentidos...

T - Não poderia te dizer todos os sentidos... Nos sentidos convencionais...

J – Com o corpo inteiro...

T - Ser testemunhada. Acho que a noção de testemunho...

J - Tem som, além de todo o aspecto visual, tem a ideia de que você caminha ali no meio de uma forma participativa, havia crianças brincando e pulando ali...

T - Tudo isso eu acho bastante excitante. Mas é preciso não esquecer que não há grande novidade nisso. Se a gente pensar, Píndaro, o poeta grego, não só dizia aqueles poemas quase que incompreensíveis e enigmáticos até hoje, mas ele os dizia improvisando, dançando, cantando, tocando a lira e ébrio. Quer dizer, isso não é novo no Ocidente, não. É apenas retomar uma complexidade que sempre existiu e que passou por um momento histórico onde houve a necessidade de idealização dessa complexidade, de simplificação...

J - E aquela performance dos bailarinos, o pessoal nu. O nu ainda é transgressor?

T - Não, de jeito nenhum. O nu nunca foi transgressor. Eu acho que essa nudez aí é apenas um signo  de uma postura talvez limpa, ideal com outro corpo. Essa obra fala do corpo  e a presença dessa nudez denota um tipo de corpo, um tipo de atitude, a ser assumida pelo olhar da obra, pela presença da obra.

Eu acho que, a rigor, todos nós ficamos nus frente a alguma coisa que nos deixa perplexos. É dessa nudez que se estava sendo explícita ali e talvez também desse contato com o corpo mais direto, essa
experiência tátil que o corpo nu imprime à diferença de um corpo vestido.

Mas, curiosamente, trata-se exatamente em um dos temas presentes... É essa mudança de pele, essa reencarnação, essa superfície a que se pode atribuir uma transformação do sujeito, a superfície da pele, que pode ser uma roupa, que pode ser a pele, que pode ser a própria pele fantasmática aqui presente como essas peles de rãs aumentadas. Rãs gigantes.

Quer dizer, eu acho que essa pele dessa nudez falou diretamente a que a viu de um modo diferente da nudez que a gente tá habituado nos outdoors da vida, nas Playboys da vida, né? Eu acho que é outro tipo de nudez. Não é uma nudez cujo erotismo seja codificado. Não é uma nudez casta tampouco. Enfim, é uma nudez bastante peculiar, particular e que se constrói, se constitui junto com a obra.

Quer dizer, você observando a presença desses bailarinos nessa primeira sala, o corpo deles, cada um
deles era como se fosse uma das partes de cada um desses elementos que constituem uma das peças. Então, eles ali estavam se integrando a essas peças, o corpo dele se integrava nas peças para formar um terceiro corpo, que era o corpo constituído do corpo deles, desse corpo aí presente, e o terceiro era essa mistura dessas coisas. Era um metamorfose nova, um novo sujeito,um novo, um nova espécie ali colocada.

J - Agora você tinha as moscas, os girinos, as rãs. Tem essa idéia da cadeia alimentar. Até alguém falou que iria fazer um jantar de rãs depois. Para os homens comerem as rãs e fecharem o ciclo.

T - (Riso) Espero que o tempero não seja mosca...

Há uma intenção no uso dessas duas espécies, pelo fato de ter uma cadeia alimentar, de ter uma pulsão, um impulso animal de um em direção ao outro. Já a fase de metamorfose realizada nos dois, quer dizer, a rigor a rã não comia a mosca, sequer, ela comia a larva da mosca. Quer dizer, existia a larva e o girino, a mosca e a rã. Mas enfim, o negócio da fantasia infantil e no conhecimento geral parece que o antagonista da mosca é a rã.

Então acho que é essa coisa polar, essa estrutura espectral que está aqui presente, mais patológica na medida em que um dos lados que se expele é complementar ao outro, diz mais alguma coisa dessa estrutura. O fato de haver uma simetria, haver uma dupla simetria, e nessa simetria um dos lados não simétrico mas é complementar ao outro, acho que diz respeito a gente, diz respeito a essa obra.

N - Por que aqui no Jardim Botânico? Tem a ver com a natureza? Ou é um espaço alternativo?

T - Para a natureza, é melhor a gente ler Virgílio, antes de qualquer coisa. A minha noção de natureza não é tão simplória de achar que a natureza no Jardim Botânico é tudo menos natureza. Quer dizer, há de ser uma natureza mas quando você olhar há uma árvore, uma planta, um inseto. Mas evidentemente é uma construção um jardim botânico, uma coisa cultural, uma construção marcada com todos os signos de uma cultura, de uma sociedade. E é lógico que essa inscrição leva em conta
isso.

Assim como o museu tem todo um conjunto de signos da sociedade, o Jardim Botânico também os tem acho que são várias...

Essa atitude, essa escolha, essa opção, carrega vários sentidos, várias significações.

Por um lado há - óbvio - um desconforto em relação ao campo das  instituições culturais voltadas  àquilo que tradicionalmente a gente chama cultura em artes plásticas. Estão os museus em geral.

Há uma atitude clara em relação aos museus e às instituições que tenderiam a abrigar esse tipo de
trabalho. Não porque haja uma incompatibilidade de qualquer natureza dessa obra com o museu, mas talvez mais por uma questão da gestão, da política cultural que tem se exercido no Brasil ultimamente.

Eu acho que há uma certa... um certo desejo de mostrar a coisa de um jeito diferente, mostrar essa obra de um jeito diferente. É evidente que eu não acredito que uma inscrição seja uma crítica negativa.

Acho que era necessário agregar a esse desejo de não estar presente no museu aqui no Brasil a uma outra postura positiva que era a de aproximar essa obra a essa situação que é a de um jardim botânico, que é um lugar de cultura, que é uma construção cultural mas que leva para um lado diverso e que, pelo que eu sei, me parece  uma instituição exemplar aqui no Rio de
Janeiro. Se não é exemplar, se eu estiver equivocado por desinformação, pelo menos no meu imaginário e na minha trajetória, na minha existência, tem sido um lugar de grande grande importância. O Jardim Botânico... Então eu acho que tem um lado até afetivo se você quiser considerar .

J - Você se manifestou, a classe artística em geral se manifestou contra a censura do  quadro da Márcia X, no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB).

T - Veja bem, eu acho que isso é uma pontinha de um iceberg bem maior do que isso. Eu  acho que há uma gestão de cultura intencional no Brasil. Não à toa que os órgãos do governo que não estão ligados ao Ministério da Cultura exercem um papel cultural no Brasil de extrema força, com extrema violência com determinação oculta, mas muito clara.

Você olha tanto no CCBB ou os patrocínios dados pela Finep ou a política cultural da Petrobrás há uma opção clara e um perfil cutural claro nisso. Então é uma farsa,  há ali funcionários públicos atrás do Banco do Brasil, de carreira, que vão escolher os artistas. Há toda uma complexidade, há um sistema complexo, um cultura brasileira muito bem subvencionada, muito bem paga com valores fora dos valores do mercado. Há um dirigismo cultural nisso e isso é gravíssimo porque em vez disso ser explícito que é a política cultural, aparece de um modo escamoteado.

J - Que perfil é esse de que você fala?

T - Veja o currículo dessas instituições  e veja o que nos representa tanto nacional como internacionalmente pelo que recebe patrocínio, subsídios vindos da isenção fiscal, vindo de leis que são nosso dinheiro...

J - É tudo renúncia fiscal...

T - Essa lei de renúncia fiscal, não estou só falando da lei, precisamente. Estou falando de como essa lei é utilizada por estes centros culturais dessas companhias que se têm, enfim, como a Petrobrás, que
tem um lado do Estado e um lado de empresa...

N - ...privada, o que a torna de economia mista.

T - Economia mista, exato. Quer dizer, eu acho que essas empresas que são de economia mista, que têm esse pé no Estado, e que são geridas, funcionam com isenção fiscal, têm uma responsabilidade cultural que não é só fazer o bem ou fazer publicidade ou dizer como nós somos bonitos.

Eles estão traçando milionariamente o perfil da cultura brasileira. E ninguém é capaz de mostrar isso e dizer isso claramente. Isso termina nos dando um confronto com o mercado espontâneo muito curioso. Eu acho que é isso é que se deveria ver. Quando há uma coisa arbitrária como uma censura exercida...

Não é a primeira vez que isso acontece no Banco do Brasil. Aconteceu no Museu de Arte Moderna. Deve acontecer freqüentemente nas escolhas que essas instituições  fazem. É evidente que eles escolhem aquilo que os apraz e aquilo que os apraz tem um perfil ideológico, privado, do cidadão que está ali por trás.

Quero que seja claro, quero que seja dito, porque eu quero ver com quem estou lidando, com quem estou mexendo. Sou um agente cultural, sou um poeta antes de mais nada. Mas como poeta me inscrevo como tal nessa sociedade.

Então quero saber que lugar é esse e isso nunca é dito. Isso é apresentado anualmente,  esse ano vamos fazer tal qual e tal. Eu não nego a qualidade de muitas dessas coisas que são apresentadas. O que nego é a ausência total de uma responsabilidade cultural. Um museu é um lugar que deve ter e pede-se dele uma responsabilidade cultural.

O papel do museu é sedimentar, sedimentar as referências, os paradigmas, que são aqueles onde se
deve espelhar, se deve pensar a cultura que está construindo.

Qual é o papel de um centro cultural? O centro cultural, o papel dele é fazer agir as obras, as
manifestações de uma cultura  presente, uma cultura que se faz a cada dia.

Ou seja, nem um nem outro estão funcionando como tal. Há uma anomalia, uma anomalia que me parece grave devido ao fato disso não ser claro, devido ao fato disso ser feito como laissez-faire e todos os artistas em geral, a classe em geral  está muito feliz por poder ter acesso ao catálogo de uma exposição de um ou outro artista. Não quero um catálogo, não quero uma exposição. Eu quero um perfil cultural. Eu quero um programa para transformar essa sociedade. Um programa
cultural explícito.

J - Quer dizer que os órgãos oficiais, as instituições, não estão dando a liberdade que você
gostaria para os artistas fazerem, produzirem a identidade cultural brasileira, que é uma coisa tão
importante?

T - Eu não acho que eles estejam dando ou não. Eu quero saber ao que eles vieram. Vieram para justificar a isenção fiscal? Vieram para trazer pão e circo? Vieram para trazer uma audiência pública? Vieram para fazer publicidade de seus eventos? Vieram para ser bonzinhos ou vieram com propósitos de melhorar a sociedade? Melhorar a vida das pessoas naquilo que diz
respeito a uma cultura?

Depois a questão da identidade cultural não parece um questão tão simples também. Eu acho que o Brasil deveria procurar mais a obra dos seus artistas, poetas, músicos aquilo que falam da identidade
cultural do que tentar essa formulação de um projeto de identidade cultural.

Identidade cultural é um problema que me parece bastante europeu, quer dizer, eu vejo na modernidade o enunciado da vontade da dissolução da identidade. E isso é um enunciado que funda o Estado moderno e que dá cultura. Isso sempre foi muito claro para aqueles que fundaram a coisa moderna.

Curiosamente o Brasil pode levar a diante por condições adversas que são de flutuação da identidade
que bastante me interessa, que bastante foi refletida na obra de grandes autores como Oswald de Andrade, como Flávio de Carvalho, como Hélio Oiticica etc.

Eu acho que caberia uma reflexão maior do que é essa identidade, o que é a vontade de identidade, para não se cair num nacionalismo que, em geral, essa questão da identidade nos leva e que parece uma posição bastante retrógrada.

J - Na era da globalização, como há uma pressão enorme para homogeneizar diversos processos, o que diferencia um país do outro é a sua cultura, a diferença é a identidade cultural de um povo?

T - O que me interessa mais, nesse caso, é  a dinâmica cultural. No Brasil se anunciou claramente a
capacidade de ingestão da cultura do outro e eu acho que essa reflexão nos leva, no momento atual, a
compreender que talvez a identidade brasileira seja a identidade da própria transformação contínua da
identidade. E isso me parece ser muito mais um quadro progressista em relação a essa nossa noção de
identidade, atual, do que a busca das diferenças.

Talvez seja a busca da dinâmica das possíveis diferenças e não da diferenças em si. Você se transformar a cada dia, você diz: você é igual a quem? É idêntico a quem?

Você é idêntico à própria dinâmica da transformação. Eu acho que esta é uma questão brasileira. Eu acho que esta é uma questão sugerida no manifesto do Oswald, é uma questão pensada claramente na obra do Hélio, eu acho que essa é uma questão que nos cabe.

Então a gente vai procurar se identificar como sendo o povo do futebol e do samba? É um equívoco. O povo da dinâmica da transformação de uma estrutura musical como o samba em outra coisa que não o samba, já é outro samba mais complexo etc. etc. O que eu acho que é preciso pensar é na estrutura que nos permite ser  idênticos e diferentes de si mesmos. Quer dizer, é um mutação contínua.

J - Agora, nessa questão do quadro da Márcia X há também intolerância religiosa. Depois o pessoal
espalhou os cartazes pela cidade, o prefeito César Maia mandou recolher. Obviamente o prefeito mandou recolher num gesto demagógico para agradar às igrejas.

T - Não vejo tanto a questão das igrejas. O que me interessa ali é o instrumento da pressão que foi
exercida. Pelo que eu sei do jornal, daquilo que foi dito, é que correntistas de um banco público-privado iriam tirar as suas contas caso aquela obra estivesse ali. Então é preciso ficar atento à letra das coisas. É um volume de dinheiro depositado que iria sair se caso aquela imagem continuasse ali. Ponto. Essa é a pressão que foi exercida.

J - É uma pressão econômica, mas é uma forma de censura e, segundo consta, eram pessoas ligadas a uma seita dessas da Igreja Católica mais conservadora, a Opus Dei.

T - Poderia ser qualquer grupo. Qualquer grupo de depositantes poderia exercer isso. O que me interessa é a dinâmica disso. Não é essa identidade de um ou outro ser muçulmano, cristão ou judeu. O que me interessa foi o exercício da pressão que foi feita a partir de um volume de dinheiro de correntistas.

Então é preciso saber que os correntistas têm o poder de interferência na direção do banco que tem o poder de ingerência sobre aquilo que eles pretendem autônomo do banco. Até na isenção fiscal eles têm uma autonomia do banco que é o centro cultural. Ou seja, o centro cultural, ficou claro que o centro cultural dependia diretamente da ordem do presidente do banco, da diretoria do banco que sofreria pressão direta desses acionistas, ou seus correntistas, sequer acionistas.

Quer dizer, a rigor, o Banco do Brasil pode muito bem ser dirigido pelos acionistas do Banco do Brasil. E eles vão dizer o perfil cultural que nós vamos passar a viver. Porque a visitação é imensa, os fundos são imensos, os recursos que eles têm são enormes. E eles estão sendo usados dessa jeito. Pela vontade, pelo desejo de algumas pessoas. Quer dizer, um desvio perverso da finalidade e da vocação dessa instituição, nesse caso.

J - Falei em intolerância religiosa. Não citei muçulmanos, cristãos. Porque há uma radicalização, nem
tanto aqui no Brasil.

T - O grave não é que esse ou aquele grupinho. No caso da retirada de uma obra do artista Nelson Leirner do Museu de Arte Moderna, foi um juiz, Siro Darlan. Resolveu que a presença do falus desenhado sobre a imagem de um bebê era atentatório aos menores. Aquilo poderia desviar a formação dos menores que tanto visitam o Museu de Arte Moderna. E a obra foi tirada,
independente dos seus curadores ou diretores do museu. Por ordem judicial. Há uma lei que permite isso. Eu acho que há buracos que a gente pode observar e alguns desses buracos podem se tornar mais ou menos graves.

J - Uma última pergunta: a questão da crítica. Ferreira Gullar andou criticando seu trabalho. Você
perguntou: Ferreira quem? Como é a relação do artista com o crítico? Não interessa a opinião deles para o seu trabalho criativo?

T- Veja bem, eu acho que há um equívoco aí. Eu não vi nenhuma crítica do Ferreira Gullar ao meu trabalho. Eu vi uma crítica do Ferreira Gullar ao meu nome. Só. Ele se referiu ao meu nome, não se referiu ao meutrabalho. Então não posso dizer nada sobre essa... Aliás, Ferreira quem? Mais uma vez. Eu vou lhe dizer a nota que foi mandada ao jornal e que não foi publicada.

Eu não me defendo porque não foi feita crítica nenhuma. Agora eu estive no MoMA (Museum of Modern Art), de Nova Iorque; no Museu do Louvre e no Jeu de Paume, em Paris, na Whitechapel, de Londres; na Kuntzhalle, em Berlim; nos maiores museus do mundo e nunca ouvi falar
nesse cidadão...

Todos expuseram minha obra e sabem quem eu sou. Eu acho que esses são os lugares onde se faz arte contemporânea, talvez não na Casa do Saber. Eu acho que eu estou nesses lugares; ele, não.

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