sábado, 26 de setembro de 2015

Putin usa Síria em sua escalada estratégica

O protoditador russo Vladimir Putin vai usar o discurso de segunda-feira na Assembleia Geral das Nações Unidas para justificar mais um cartada na sua obsessão estratégica de resgatar pelo menos parte do poder imperial perdido com o fim da União Soviética. Vai apresentar a intervenção militar da Rússia na guerra civil da Síria como sua contribuição na luta contra o terrorismo e o Estado Islâmico do Iraque e do Levante.

A ditadura de Bachar Assad, aliado do Kremlin, controla hoje apenas 15% a 20% do território sírio. Por isso, a Rússia optou por uma intervenção militar direta a pretexto de combater o Estado Islâmico. Na prática, é mais um lance da estratégia de Putin para jogar em todos os tabuleiros sem perder qualquer chance de apoiar regimes autoritários e desafiar o Ocidente.

Assad é o principal responsável pela guerra civil na Síria. Seus bombardeios à população civil em áreas rebeladas matam muito mais do que o Estado Islâmico. Tanto a Europa quanto os EUA aceitam negociar com o regime, mas entendem que a saída do ditador é precondição para acabar com uma guerra civil que ele começou, já matou mais de 250 mil pessoas e provocou a fuga do país de 4 milhões de pessoas, sem falar de outros 7 milhões desalojados internamente.

Um inquérito conduzido na ONU pelo sociedade brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro comprovou o uso de armas químicas naquele caso de 2013. A Rússia impediu que o relatório apontasse os responsáveis. 

Obama tinha ameaçado bombardear as forças de Assad se o ditador usasse armas químicas. Aceitou a proposta russa para eliminar as armas químicas da Síria, um desarmamento apenas parcial como mostra o uso recente de bombas de cloro pela ditadura. O presidente dos EUA traçou uma "linha vermelha", o regime sírio ignorou, com o apoio do Moscou, e ficou por isso mesmo.

Ao vacilar, Obama validou as iniciativas de uso da força de Putin. Meses depois, a Rússia interveio militarmente na Ucrânia, anexou a península da Crimeia e deflagrou uma rebelião no Leste da ex-república soviética, punida por se afastar da órbita de Moscou.

Sem tantas hesitações dos EUA e da Europa, Putin não estaria hoje concentrando aviões, helicópteros e soldados numa base aérea da Síria. Está defendendo sua única base militar no Mar Mediterrâneo, que fica na Síria, e aumentando seu poder no Oriente Médio.

A URSS deixou de ser uma potência no Oriente Médio quando o ditador egípcio Anuar Sadat abandonou a aliança com Moscou e virou aliado dos EUA, em 1977, para recuperar a Península do Sinai em negociações diretas com Israel. Quatro anos antes, a URSS entrara em alerta nuclear para impedir que Israel destruísse o III Exército do Egito na Guerra do Yom Kippur (Dia do Perdão). 

A questão é se agora a Rússia vai conseguir virar o jogo. No Afeganistão, extremistas muçulmanos conseguiram humilhar o Exército Vermelho, com o apoio dos EUA, Arábia Saudita, China e Paquistão. Lá, nasceu a rede terrorista Al Caeda (A Base), origem do Estado Islâmico. Com mísseis antiaéreos, os jihadistas neutralizaram a superioridade área da URSS.

Para a empresa de análises estratégicas Stratfor, a guerra civil síria será decidida no campo de batalha e não em negociações internacionais. Grupos como o EI, Al Caeda e o Exército da Conquista não vão participar de negociações. Terão de ser derrotados em combates no solo.

Outra questão: dá para acreditar que uma improvável vitória de Assad reduza o fluxo migratório para a Europa? A Síria está arrasada. O frágil equilíbrio entre a minoria alauíta, um ramo do xiismo, a maioria sunita e as minoriais curda, cristã, drusa e caldeia existente antes da guerra não será restaurado sob Assad. A Síria é mais um Estado em colapso, a exemplo do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, do Líbano e da Somália, focos de agitação e terrorismo.

A reconstrução de um país é uma tarefa muito mais complexa do que sua destruição, como mostram as invasões do Afeganistão e do Iraque e a intervenção militar na Líbia para evitar que o ditador Muamar Kadafi massacrasse seu próprio povo, em 2011, quando Assad começava a fazer isso. Para conquistar a paz, é preciso construir ou reconstruir a máquina do Estado e a nação. 

O Afeganistão sempre foi um país tribal. A lealdade ao grupo étnico está acima do sentimento de nacionalidade. Seria necessário um grande investimento para reconstruir o país depois da invasão soviética e do domínio caótico dos grupos extremistas muçulmanos que tomaram conta do país com a retirada soviética.

Depois de deixar Ossama Ben Laden escapar na Batalha de Bora Bora, no fim de 2001, o então presidente americano George W. Bush desviou a atenção para invadir o Iraque e depor Saddam Hussein. Não basta ganhar a guerra. É preciso conquistar a paz reconstruindo uma sociedade que funcione e seja capaz de se autossustentar. Nesse sentido, os EUA fracassaram no Afeganistão e no Iraque, e a ONU fracassou na Líbia.

Ao se opor à invasão do Iraque, o então secretário de Estado americano, general Colin Powell, foi claro: depois de derrubar Saddam Hussein, os EUA seriam responsáveis por administrar um país de 25 milhões de habitantes dos quais não conheciam a língua nem a cultura. 

O processo foi dominado pelos neoconservadores do Pentágono, iludidos com o sonho de serem recebido como libertadores. Algum dia imaginaram que os EUA iriam governar um país árabe? Faltaram planos Marshall para Iraque e Afeganistão como o que reconstruiu a Europa depois da Segunda Guerra Mundial. 

Na verdade, construir Estados e nações nunca estiveram nos planos de Bush e seus asseclas. O candidato Bush deixou isso claro num dos debates com o vice-presidente Al Gore durante a campanha eleitoral de 2000. Sairia muito mais caro. O preço real está sendo muito maior.

O Estado Islâmico é fruto da destruição dos estados nacionais, do fracasso da Primavera Árabe em oferecer uma alternativa democrática e da guerra de Assad contra seu próprio povo. Grande parte de suas forças são ex-soldados e ex-policiais da ditadura de Saddam desmobilizados numa das grantes besteiras da invasão americana: desempregar centenas de milhares de homens com formação militar.

De positivo, a intervenção militar russa obriga os EUA a tomarem uma posição na guerra civil da Síria. A ajuda aos rebeldes sempre foi indireta e insuficiente. Dentro da estratégia de Assad de libertar os jihadistas e acusar os inimigos de terrorismo, não há moderados no campo de batalha. A oposição civil não tinha formação militar e foi logo esmagada.

O EI como inimigo comum ajuda, mas será suficiente? Depende do sucesso da invasão russa. A Rússia vai colocar soldados no campo de batalha, o que o Ocidente reluta em fazer?

Putin quer também uma acomodação da questão da Ucrânia e o fim das sanções dos EUA e da União Europeia sem deixar de interferir no país vizinho, que considera parte da Rússia. Obama vai aceitar a barganha? 

As Forças Armadas de Assad estão destroçadas. A maioria dos sucessos do regime no campo de batalha é atribuída à milícia fundamentalista xiita libanesa Hesbolá, armada e financiada pelo Irã, o grande sustentáculo de Assad ao lado da Rússia.

Aceitar a narrativa russa de que não há saída sem Assad no poder significa legitimar o regime responsável pela maior tragédia humanitária de hoje no mundo. Putin fala no "governo legítimo da Síria". O Ocidente alega que ele perdeu a legitimidade ao massacrar seu próprio povo. Ceder será uma capitulação em nome da estabilidade de um Estado que na prática não existe mais.

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