sexta-feira, 19 de junho de 2015

Chile x Bolívia é um jogo marcado por uma rivalidade histórica

Quando Chile e Bolívia se enfrentarem hoje à noite no sinistro Estádio Nacional de Santiago pela Copa América, também entra em campo uma rivalidade histórica que vem da Guerra do Pacífico (1879-83), em que os bolivianos perderam a saída para o mar. No momento, a Bolívia recorre ao Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas para obrigar o Chile a negociar.

Ao proclamar a fundação da República de Bolívar, nome meses depois mudado para Bolívia, em 1825, o libertador Simón Bolívar exigiu que o país tivesse uma saída para o mar, conhecida como a província do Litoral. Na época, Chile e Peru protestaram, alegando que eles dividiam a fronteira.

Em 1837, quando Bolívia e Peru formaram a Confederação Peruano-Boliviana, o Chile, sentindo-se ameaçado, foi à guerra, conseguindo acabar com a confederação. Isso levou a décadas de instabilidade política e econômica nos derrotados, de novo divididos em dois países.

Dois tratados foram assinados, em 1866 e 1874, para tentar definir a fronteira no Deserto do Atacama, onde havia jazidas de cobre, guano e salitre, esses dois últimos grandes fontes de nitratos usados como fertilizantes na agricultura.
Antes da guerra


Pelo acordo, uma empresa chilena, a Companía de Salitres y Ferrocarriles de Antofagasta (CSFA), com 30% de capital britânico e participação acionária de políticos e militares chilenos, teria o direito de explorar essas reservas sem a cobrança de impostos durante 25 anos.

Em pesquisa nos arquivos do Ministério do Exterior do Reino Unido, o historiador marxista britânico Victor Kiernan não encontrou nenhum documento comprovando a interferência direta do governo de Londres na Guerra do Pacífico, mas houve a influência de capitais privados e de fabricantes de armas de vários países interessados em avaliar o impacto de novas armas, como metralhadoras e navios blindados.

DEZ CENTAVOS
Depois de um maremoto que arrasou Antofagasta em 1877, o governo boliviano decidiu em 1878 cobrar um imposto de dez centavos sobre cada quintal de 100 quilos de salitre extraído na região. O Chile protestou e pediu uma mediação internacional para resolver o conflito.

A Bolívia não só rejeitou a mediação como cassou a licença da companhia, encampou seus bens e marcou um leilão para vendê-los em 14 de fevereiro de 1879. Naquele dia, 200 soldados do Chile tomaram Antofagasta sob aplausos da população local, de maioria chilena, atraída para CSFA.

Em 1º de março de 1879, a Bolívia declarou guerra ao Chile e cobrou o apoio do Peru. Desde 1873, os dois países tinham um acordo secreto de defesa mútua. O Congresso peruano marcou uma sessão para decidir a posição do país, a princípio neutro, em 24 de abril. Antes disso, em 5 de abril de 1879, o Chile declarou guerra a ambos.

LUTA PELA HEGEMONIA
A Guerra do Pacífico também é conhecida como a Guerra do Salitre e a Guerra dos Dez Centavos, mas é claro que havia muito mais do que dez centavos por quintal de salitre em jogo, observou o historiador britânico Ronald Bruce St. John: "Por um lado, havia a força, o prestígio e a estabilidade do Chile, comparados com a deterioração econômica e a instabilidade política que caracterizaram a Bolívia e o Peru depois da independência.

"Por outro lado", acrescenta o historiador, "estava em curso uma luta pela hegemonia política e econômica da região, complicada ainda mais pela profunda antipatia entre o Chile e o Peru. Nesse ambiente, a incerteza sobre as fronteiras entre os três países se somou ao descobrimento de valiosos depósitos de nitrato e guano nos territórios disputados para produzir um conflito de dimensões insuperáveis."

MISSÃO BALMACEDA
A fim de garantir a neutralidade da Argentina, que tinha litígios territoriais com o Chile no Sul do continente, ambos reivindicavam a Patagônia, o governo chileno enviou a Buenos Aires o embaixador José Manuel Balmaceda. Ele foi mais tarde ministro das Relações Exteriores (1881-82), ministro do Interior (1882-85) e presidente do Chile (1886-91).

Na época, o Exército da Argentina estava empenhado em consolidar o domínio sobre as terras do Sul do país, habitadas por indígenas rebeldes. A Campanha do Deserto, liderada pelo general Julio Argentino Roca, também futuro presidente, exterminou os índios como se ninguém vivesse lá. O Chile temia que fosse uma preparação para atacá-lo.

A Bolívia e o Peru pediram ajuda à Argentina. Diante da Missão Balmaceda, o presidente Nicolás Avellaneda decidiu manter a neutralidade, contrariando a linha dura. O jovem Roque Sáenz Peña, que seria presidente da Argentina (1910-14) e virou nome de praça na Tijuca, no Rio de Janeiro, lutou como voluntário do Exército do Peru.

Um dos principais receios da Argentina era que o Chile pedisse ajuda ao Império do Brasil, ampliando o conflito para dimensões continentais. Como não têm fronteiras comuns, o Brasil e o Chile mantinham boas relações, a ponto de mais tarde o Barão do Rio Branco, o mais importante ministro das Relações Exteriores brasileiro, dizer que o Chile era o único país amigo do Brasil na América do Sul.

GUERRA NO MAR
Nos primeiros seis meses da Guerra do Pacífico, houve uma disputa pela supremacia naval, importante para a guerra no Deserto do Atacama, a região mais seca do mundo. Como a Bolívia não tinha forças navais, a guerra no mar foi travada pelas marinhas do Chile e do Peru.

Com duas fragatas blindadas, Cochrane e Blanco Escalada, o Chile tinha superioridade naval. A Marinha peruana ficou logo reduzida a um navio de combate, o Huáscar. Sob o comando do almirante Miguel Grau, que passou à história como o Cavaleiro dos Mares, um dos grandes heróis do Peru, durante cinco meses as Corridas do Huáscar desafiaram a armada chilena até o navio ser tomado, em 8 de outubro de 1879.

A Bolívia abandonou a guerra depois da derrota aliada na Batalha de Tacna, em 26 de maio de 1880. O Exército boliviano tem fama de ser o mais incompetente da América do Sul. Foi responsável por 194 golpes e tentativas de golpe, um triste recorde mundial. Massacrou seu próprio povo, mas perdeu todas as guerras, a saída para o mar para o Chile; o Acre para o Brasil; e parte da região do Chaco para o Paraguai.

O Exército do Peru sofreu nova derrota na Batalha de Arica, em 7 de junho de 1880. Naquele ano, os Estados Unidos tentaram mediar a paz em troca de concessões da Bolívia e do Peru para explorar a área. Mas o Chile se negou a devolver os territórios ocupados, a província boliviana do Litoral ou de Antofagasta e a província peruana de Tarapacá.

Fim da guerra
INVASÃO DE LIMA
Sem acordo, o Exército chileno entrou em Lima em 17 de janeiro de 1881, mas não conseguiu tomar o resto do Peru. Nos últimos dois anos, o Peru resistiu com uma guerra de guerrilhas na região da Cordilheira dos Andres liderada por Andrés Cáceres, que virou um herói nacional, foi ditador (1884-85) e presidente constitucional do país (1886-90 e 1894-95).

Em 23 de julho de 1881, como preço de sua neutralidade, a Argentina fez um acordo que lhe dava a Patagônia oriental, a leste dos Andes, e cedia ao Chile o controle total sobre o Estreito de Magalhães.

Se o estreito fosse bloqueado pela Argentina, as forças chilenas só poderiam receber suprimentos da Europa através do Panamá, onde na época as cargas passavam em lombo de burro, já que o canal interoceânico só foi aberto em 1914, ou dando a volta no Cabo dos Chifres, considerado o local mais perigoso da navegação mundial.

A Guerra do Pacífico terminou em 20 de outubro de 1883 com a assinatura em Lima do Tratado de Ancón entre Chile e Peru. O total de mortos foi estimado em 13 a 18 mil bolivianos e peruanos, e 2,4 mil a 2,8 mil chilenos.

NOVAS FRONTEIRAS
O acordo de paz deu ao Chile "perpétua e incondicionalmente" a soberania sobre o departamento de Tarapacá e o direito de ocupação durante dez anos das províncias peruanas de Arica e Tacna. Ao fim desse período, haveria um plebiscito para decidir o futuro desses territórios.

Mapa atual
O Tratado de Paz e Amizade de 1904 redefiniu as fronteiras do Chile e da Bolívia, que perdeu toda a província do Litoral, com 400 quilômetros de costa e 120 mil quilômetros quadrados de território, ficando sem saída para o mar, principal motivo para o ressentimento que amarga até hoje.


Em 1929, o Tratado de Lima redesenhou as fronteiras entre o Chile e o Peru. Em troca da devolução de Tacna, Arica foi cedida ao Chile.


Até hoje, a Bolívia luta para recuperar sua saída para o mar e mantém uma Marinha estacionada no Lago Titicaca, distante do litoral, a 3.812 metros acima do nível do mar.

PROPOSTA CHILENA
Durante o último ciclo de ditaduras militares, quando os generais Augusto Pinochet e Hugo Banzer eram aliados na luta contra a esquerda na América do Sul, em 1975, Pinochet ofereceu à Bolívia um corredor ao norte da cidade de Arica para lhe dar acesso ao mar.

Como era território peruano antes da Guerra do Pacífico, o Peru teria de concordar. O ditador peruano, Francisco Morales Bermúdez, rejeitou a proposta.

Depois da descoberta de grandes jazidas de gás natural na província boliviana de Tarija no fim do século passado, o presidente Jorge Quiroga anunciou em 2002 a construção de um gasoduto para exportar gás para os EUA através de um porto chileno. A venda de mais uma riqueza nacional a estrangeiros com que a Bolívia tem diferenças históricas causou uma revolta popular.

GUERRA DO GÁS
Na chamada Guerra do Gás, em setembro e outubro de 2003, os bolivianos se rebelaram contra o presidente Gonzalo Sánchez de Losada, que tem dupla nacionalidade, é americano e fala espanhol com sotaque forte. Pelo menos 64 pessoas morreram e 228 foram feridas em confrontos com as forças de segurança.

Sob a pressão das ruas, Sánchez de Losada renunciou em 17 de outubro de 2003, dando início a um período de instabilidade política. Isso só acabou com a eleição de Evo Morales, do Movimento ao Socialismo (MAS), o primeiro índio a governar o país de maioria indígena desde a independência.

Morales ganhou a eleição de 18 de dezembro de 2005, com 54% dos votos. Foi o primeiro presidente eleito com maioria absoluta da história da Bolívia.

ESTATIZAÇÃO
Em 1º de maio de 2006, Dia do Trabalho, Morales estatizou as jazidas de petróleo e gás, e mandou o Exército ocupar as instalações da Petrobrás, ignorando os apelos do governo brasileiro por uma solução negociada.

Com o apoio do caudilho venezuelano Hugo Chávez, que prometia tomar banho de mar numa praia boliviana, o governo Morales tentou reabrir a negociação no âmbito da União das Nações Sul-Americanas (Unasul). O Chile rejeitou, alegando não haver mais nada a negociar. A Bolívia tem o direito de usar portos chilenos, mas não tem soberania sobre nenhum território com saída para o mar.

TRIBUNAL DA ONU
Sem sucesso, a Bolívia apelou em 24 de abril de 2013 à Corte Internacional de Justiça da ONU, com sede em Haia, na Holanda. O governo boliviano se baseia no "direito de expectativa". Alega que, ao fazer sua proposta, o ditador Augusto Pinochet criou uma expectativa de que o Chile negociaria uma saída para o mar, acabando com a mediterraneidade boliviana.

Os dois países apresentaram seus argumentos no tribunal de 4 a 8 de maio de 2015. O Chile afirma que não há nada a negociar porque as fronteiras foram estabelecidas pelo tratado de 1904. Pede ao tribunal da ONU que não aceite o caso.

O governo chileno alega ainda que o Pacto de Bogotá ou Tratado Americano de Soluções Pacíficas, de 1948, estabeleceu o princípio de que os países da região não recorreriam ao tribunal da ONU para resolver questões anteriores à criação do tribunal, em 1945.

A Corte de Haia ainda não marcou a data para apresentar sua decisão.

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