sábado, 26 de maio de 2012

Queda de Bo reaviva fantasma da Revolução Cultural

A Grande Revolução Cultural Proletária (1966-76) é o maior trauma da história recente da China. Ainda molda o debate político, especialmente em momentos de crise como agora, com o expurgo do alto dirigente comunista Bo Xilai e a prisão de sua mulher, Gu Kailai, acusada pela morte do empresário britânico Neil Heywood, que seria mediador dos negócios sujos internacionais do casal.

Uma das justificativas para reprimir o movimento dos estudantes na Praça da Paz Celestial, em 1989, foi que a democracia traria de volta a anarquia e a luta pelo poder que caracterizaram o período mais traumático do regime comunista, em que os valores tradicionais foram repudiados, e a razoabilidade ou bom senso, substituídos por um radicalismo destrutivo. O trânsito andava no sinal vermelho e parava no verde.

Foi o desastre da Revolução Cultural que permitiu a Deng Xiaoping promover a guinada do regime para a "economia de mercado socialista". Em primeiro lugar, a proposta de modernização era a única capaz de unir o partido, extremamente fragmentado pela luta interna fratricida desencadeada por Mao Tsé-tung em 1966 para não perder o controle do PC chinês. 

Em segundo lugar, Deng usou o argumento de que o militar, o operário e o camponês chineses, os heróis da revolução, ainda levavam vidas muito pobres, com grandes privações, introduzindo o conceito de "democracia econômica", que incluía a descentralização das decisões.

Logo, os reformistas mais entusiasmados com a liberdade quiseram radicalizar o processo rumo à democratização. Quando a velha guarda lançou uma nova campanha contra o "liberalismo burguês", Deng a conteve com seus quatro princípios de que a base do regime era o pensamento marxista-leninista de Mao, com o monopólio de poder do partido comunista, socialismo e ditadura do proletariado. 

Daí vem a contradição básica da reforma econômica chinesa: descentralização e liberdade de iniciativa para desenvolver as forças produtivas, sem democracia. Liberdade econômica sem liberdade política. É permitido enriquecer, mas não criticar o governo.


Há um limite que será testado na medida em que a nova elite econômica se assustar com os crimes e a violência que marcaram a ascensão e a queda de Bo Xilai. Bo era líder do partido na cidade-província de Xunquim, um prefeito com status de governador, e membro do Politburo do Comitê Central, formado por 25 pessoas. Sonhava em ascender neste ano ao Comitê Permanente do Politburo, de nove membros, os chamados nove imperadores que governam a China de fato.

Deng sufocou a democratização para conter a velha guarda do outro lado, num delicado equilíbrio construído a cada momento do debate ideológico interno do PC. Estava convencido de que a liderança do partido era essencial a seu processo de modernização. Para manter o apoio às reformas, precisava conter o conflito entre reformistas e stalinistas.

A democracia era um instrumento utilitário a ser usado na base. Deng nunca pretendeu levá-la até o topo. No diário de Zhao Ziyang, Prisioneiro do Estado, o líder do PC afastado por se opor à intervenção do Exército Popular de Libertação na Praça da Paz Celestial, em 1989, revela ter recebido ordens expressas de Deng para não incluir entre os temas em debate no partido nada que se assemelhasse à divisão do governo em três poderes, no modelo criado pelo filósofo francês Charles de Montesquieu.

Quando Bo caiu, em março de 2012, o primeiro-ministro Wen Jiabao, que esteve com Zhao dialogando com os estudantes dias antes do massacre de 1989, defendeu no Congresso Nacional do Povo a retomada das reformas políticas, alertando que a alternativa é a volta da Revolução Cultural. Mas esse ímpeto já teria sido controlado. Numa reunião recente da cúpula do partido, do governo e do regime, o presidente Hu Jintao teria deixado claro que o escândalo deve ser considerado um "fato isolado".

Em Governing China, o sinólogo americano Kenneth Lieberthal afirma que a China conseguiu há dois mil anos organizar uma burocracia capaz de administrar seu vasto território, de dimensões imperiais, mas suas elites nunca conseguiram criar um sistema político capaz de regular a disputa de poder entre estas elites.

A queda espetacular de Bo Xilai, a revelação dos métodos criminosos que usava e dos privilégios de que seu clã desfrutava mostram que o problema não foi resolvido nem há solução a vista.

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