quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Humala é fenômeno passageiro

A expressiva votação do candidato ultranacionalista à Presidência do Peru, Ollanta Humala - 31% no primeiro turno e 45% no segundo -, não é um fenômeno isolado nem se deve à expansão do bolivarismo pregado pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, afirma o jornalista e escritor peruano Mirko Lauer, editor do jornal La República. Ele debateu o resultado das eleições peruanas com o diplomata brasileiro Ademar Seabra da Cruz, em 10 de agosto, na série de seminários sobre as eleições na América Latina promovida no Rio de Janeiro pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

“Humala não existe como uma coisa específica”, declarou Lauer. Teria apenas herdado as votações no primeiro turno dos ex-presidentes Alberto Fujimori (1990-2000) e Alejandro Toledo (2001-06). “É um fenômeno passageiro. As próximas eleições serão disputadas por Toledo e Fujimori.”

Ademar, chefe do setor político da Embaixada do Brasil em Lima, viu no resultado da eleição presidencial um reflexo das profundas divisões étnicas e sociais do Peru, entre campo e cidade, entre a capital e o interior. Isto teria provocado um debate eleitoral sobre a inclusão social, num país de 28 milhões de habitantes, sendo 45% indígenas e 37% mestiços, com produto interno bruto de US$ 65 bilhões e 51,2% da população vivendo na pobreza.

“Existe um eleitorado descontente, excluído socialmente, marginalizado economicamente, situado na Serra e no Sul, que busca uma saída eleitoral”, observa Mirko Lauer. “Votou contra em outras eleições. O terrorismo do Sendero Luminoso matou 70 mil pessoas, 65 mil nesta zona. Eles votaram em Fujimori, Toledo e Humala. Os três argumentaram que não eram brancos e que não eram da elite”. Apresentaram-se como candidatos de oposição à elite branca de origem européia que domina o Peru, na opinião de Lauer um dos países mais conservadores do continente.

“O Peru trem uma tradição de excepcionalismo de direita”, explicou o editor de La República, que também é professor universitário. “No processo de independência, não queria ser independente porque o Vice-Reino do Peru era um dos centros e sedes do poder espanhol. Teve de ser invadido por cinco exército estrangeiros. De 1808-10 a 1824, está à direita, no campo conservador”.

Por esta razão, a última batalha da independência da América espanhola foi travada em Ayacucho, no Peru, em 25 de julho de 1824.

Segundo Lauer, “o país teve seu território reduzido à metade, tinha pouca convicção republicana, pouca capacidade de manter o território e a estabilidade do governo”.

Nos anos 30 do século passado, a maioria dos países latino-americanos passa por revoluções modernizadoras de classe média, como a Revolução de 1930, no Brasil, a segunda fase da Revolução Mexicana, o acordo nacional na Colômbia e o liberalismo no Equador. No Peru, houve a revolução conservadora de Trujillo, em 1932, que esmagou o reformismo de Victor Raúl Haya de la Torre. “Foi uma etapa de obscurantismo, com fuzilamentos”, recorda o jornalista.

Este excepcionalismo de direita faz com que o Peru, continua Mirko Lauer, “em todo o governo Fujimori e depois com Toledo, tenha sido o mais pró-americano dos países da região, depois da Colômbia. O esforço de Juan Velasco Alvarado (1968-75) para fazer uma revolução de esquerda foi positivo. Mas com resultados escassos. Estamos condenados a um pacto faustiano que não firmamos. Há algo mais, além da rejeição da independência, para que Toledo seja pró-Bush”.

Com sua tradição conservadora, o Peru negou-se a receber exilados da guerra civil espanhola e da ditadura militar do general Augusto Pinochet, no Chile.

A política externa, admite Lauer, acaba refletindo a questão interna, como se viu no “caráter pró-americano e reacionário da ditadura de Fujimori e na incapacidade de atuar no espaço latino-americano”.

Toledo tentou resolver as questões de fronteiras com o Chile e o Equador mas saiu do Grupo dos 20, liderado pelo Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC), sob pressão dos EUA. Ao negociar um acordo de livre comércio com Washington, acabou provocando uma crise do Pacto Andino, do qual a Venezuela de Hugo Chávez se retirou com grande estardalhaço, acusando Peru e Colômbia de fazer acordos com os EUA.

“O camarada Chávez se meteu nas eleições peruanas, entrando em conflito com [o presidente] Alan García, deixando a Venezuela em más relações com o Peru”, constata o jornalista. “É uma pedra no sapato do Brasil. Mas Chávez é uma pedra no sapato da Comunidade Sul-Americana de Nações, do Mercosul... É importante a decisão do novo governo de levar a sério a relação com o Brasil.”

García veio ao Brasil em sua primeira viagem ao exterior como presidente eleito.

“A iniciativa mais importante é a aproximação com o Chile”, analisa o jornalista e acadêmico. “A decisão chilena de voltar ao Pacto Andino como observador revela um interesse em se tornar sócio político. É um contrapeso à saída de Chávez. Queremos um tratado de livre comércio com o Chile.”

Para Mirko Lauer, “com alianças bem encaminhadas com o Brasil e o Chile, o Peru terá reorientado sua política externa, livrando-se da maldição da independência. Estamos participando das negociações da União Européia com o grupo andino. Participamos do esforço para estabilizar a Bolívia, colaboramos com a Colômbia e estamos estudanto uma proposta de associação comercial dos países latino-americanos da costa do Pacífico para se abrir à Ásia.”

Ou seja: as ambições peruanas vão muito além do que o projeto brasileiro de integração sul-americana tem a oferecer.

Ademar reconhece que o Peru sente uma necessidade de integração múltipla: trabalha pelo acordo com a UE, pelo acordo Mercosul-Pacto Andino para criar a Comunidade Sul-Americana de Nações, por um Tratado de Livre Comércio com os EUA. Negocia livre comércio também com o México, Cingapura e a Índia. Manifestou interesse em fazer o mesmo com a China, o Japão e a Coréia do Sul. Em 2008, vai sediar a reunião de cúpula anual do fórum Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (Apec).

A economia peruana ainda é muito dependente de matérias-primas. Beneficia-se hoje do efeito China, em que o aumento mundial da demanda de produtos primários, por causa do extraordinário crescimento chinês, eleva os preços das commodities favorecendo diversas economias latino-americanas. Mas este é o tipo de exportação que não agrega valor. Não permite ao país dar um salto de qualidade.

Na opinião de Ademar Seabra da Cruz, “há uma dependência problemática de commodities que provoca instabilidades cíclicas. Este modelo de desenvolvimento para fora cristaliza a posição do Peru na divisão internacional do trabalho”.

Nenhum comentário: