terça-feira, 21 de março de 2006

Novo presidente da Bolívia “daria a vida pela nacionalização dos recursos naturais”

Até 12 de julho, o novo governo da Bolívia deve definir os termos da “nacionalização dos recursos naturais”, uma das promessas de campanha do presidente Evo Morales. A Petrobrás, maior investidor e maior empresa em atividade no pais, aguarda a definição da nova política energética boliviana para negociar.

Ontem, em Camiri, antiga capital do petróleo boliviana, que fica no Departamento de Santa Cruz, Morales, líder do Movimento ao Socialismo e do sindicato dos produtores de folha de coca, declarou que “daria minha vida pela nacionalização dos recursos naturais do pais”.

A questão foi debatida nesta terça-feira, 21 de março, no Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio. O Novo Governo Boliviano: implicações para as relações bilaterais na área energética fez parte de um ciclo de palestras sobre as eleições na América Latina.

Para o diplomata Pedro Miguel da Costa e Silva, especialista em bolívia e assessor de política externa da Presidência da República, “a eleição de Evo Morales é produto de uma crise econômica e social” que atinge o país pobre da América do Sul desde a década de 90.

Depois do ciclo de golpes e ditaduras militares, mais de 190 em 160 anos de história independente, a Bolívia elegeu em 1982 Hernán Siles Suazo. Seu governo foi marcado por uma hiperinflação que chegou a 25.000% ao ano. Em 1985, começou uma abertura econômica com adoção de políticas neoliberais. Nos anos 90, esse processo levou a uma crise, com déficit fiscal.

SENTIMENTO DE ESPOLIAÇÃO HISTÓRICA
Um dos maiores problemas é que a economia boliviana sempre esteve baseada num produto só, primeiro a prata, depois o estanho e mais recentemente o gás natural, com mercado interno pequeno, contrabando e economia informal. Há um forte sentimento de que o pais foi historicamente espoliado, de que a maioria nunca se beneficiou das riquezas nacionais, o que aumenta as reivindicações de estatização dos setores de petróleo e gás.

Com a crise fiscal, “desde 2003, o governo não consegue pagar suas contas”, disse Costa e Silva. Tudo isto agrava os grandes problemas sociais do pais, a desigualdade e a pobreza, que atingem sobretudo a maioria indígena.

“Desde os anos 80, entraram US$ 7 bilhões em investimentos externos”, constata o assessor presidencial. Mas a percepção generalizada do povo boliviano é que a abertura econômica não deu certo, o que aumenta a demanda por um modelo nacionalista estatizante. Isto e a desmoralização dos partidos tradicionais, que se alternavam no poder para defender seus próprios interesses, contribuíram para a vitória de Morales, presidente do Movimento ao Socialismo e do sindicato dos produtores de folha de coca, o que o coloca em conflito com os Estados Unidos.

QUEDA DE PRESIDENTES
A crise gerou um questionamento do Estado e uma onda de manifestações populares com bloqueio de ruas e estradas que só ajudaram a desnudar a impotência das autoridades constituídas, agravando a crise institucional. Estes protestos derrubaram o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, em 17 de outubro de 2003, na chamada Guerra do Gás.

A Bolívia perdeu sua saída para o mar para o Chile na Guerra do Pacífico (1879-83). Quando o governo Sánchez de Lozada fez um acordo para vender gás para os EUA através de um porto chileno, a hipersensibilidade e o senso de injustiça histórica dos bolivianos chegou ao limite.

Costa e Silva lembrou que o nacionalismo econômico boliviano nasceu no setor de petróleo, com a nacionalização da Standard Oil durante a Guerra do Chaco (1932-35), contra o Paraguai, quando a Bolívia perdeu mais uma pedaço de seu território. Alem da saída para o Pacífico, perdera o Acre para o Brasil nas guerras do Acre (1899-1902).

Com a queda de Sánchez de Lozada, o jornalista, historiador e empresário de comunicação Carlos Mesa assumiu a presidência para completar o mandato. Mas o déficit fiscal de 8,5% do produto interno bruto de US$ 8 bilhões não lhe deu margem de manobra.

O diplomata observou ainda que a energia mudou as relações bilaterais Brasil-Bolívia. Hoje o Brasil é o maior exportador, maior importador e maior investidor na economia boliviana. A Petrobrás é a empresa mais importante do pais.

Desde a queda de Sánchez de Lozada, há uma instabilidade política permanente. O Brasil apóia Morales e espera a organização do governo e a definição de políticas. Este processo pode ser lento porque um dos compromissos de Morales foi convocar uma Assembléia Constituinte para refundar a Bolívia.

Para aprovar a Constituinte, o novo presidente cedeu na questão da autonomia regional. Há uma perigosa polarização no pais. Os departamentos do Leste e do Sul, mais ricos, defendem o modelo neoliberal, em contraposição aos grupos indígenas do Altiplano, que exigem maior presença do Estado.

Para não concentrar toda a agenda bilateral no gás, o Brasil colabora no setor agrícola, especialmente na sojicultura, em obras de infra-estrutura e no desenvolvimento da tecnologia para aproveitar o gás. Mas prioridade é energia e aí entra a Petrobrás.

PETROBRAS É MAIOR EMPRESA DO PAÍS
Quando Brasil e Bolívia fizeram um acordo para construir um gasoduto, o objetivo era mais político, visando à integração latino-americana. Na época, nenhum sócio privado se interessou pela obra, iniciada em 1997. Agora as reservas comprovadas de gás boliviano cresceram muito, para cerca de 50 trilhões de metros cúbicos.

Hoje a Petrobrás explora 56% do gás boliviano e 40% do petróleo, disse o ex-presidente da empresa na Bolívia Décio Fabrício Oddone da Costa, gerando 18% do PIB da Bolívia. “A Petrobrás investiu US$ 1 bilhão e, com seus sócios, US$ 1,5 bilhão. Produz 70% do gás importado pelo Brasil. Gera 24% da arrecadação fiscal boliviana, US$ 535 milhões. Tem 46% das reservas de gás. É responsável por 95% do refino e por 23% da distribuição de derivados do petróleo, por 100% da gasolina e do óleo diesel, e por 20% do investimento externo direto de 1994 a 2004.”

Por tudo isto, o presidente Hugo Banzer, em seu segundo mandato (1997-2001), considerava o papel da Petrobrás dominante e convidou a empresa americana Enron. Com a privatização da companhia Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), seu controle passou para a Shell e a Enron.

A Petrobrás tinha um contrato com a YPFB em que assumia todo o risco da prospecção de gás e petróleo, afirmou Oddone da Costa: “Se achasse algo, a YPFB poderia ficar com 50%”.

Em 1997, a Petrobrás perdeu o monopólio estatal sobre o petróleo brasileiro. Nesta época, o Brasil ainda tinha um papel econômico secundário na Bolívia. Precisava construir o gasoduto e achar gás para torna-lo viável economicamente. Em dois a três anos, as reservas bolivianas comprovadas se multiplicaram, chegando a quase 50 trilhões de metros cúbicos de gás.

Mas o negócio que tinha começado com governos e baixo investimento, visando sobretudo à integração regional, passava para empresas privadas ou de economia mista, com novos investimentos e integração muito maior. A Shell chegou a comprar gás argentino para vender ao Brasil via gasoduto. De repente, sobrava gás na Bolívia.

Segundo Oddone da Costa, as concorrentes da Petrobrás iniciaram então uma campanha contra a estatal brasileira, alegando que tinha privilégios e pagava poucos impostos. Num pais com hipersensibilidade histórica e miséria crônica, foi um sinal para que o nacionalismo econômico reivindicasse a reestatização dos recursos naturais.

Em 1990, havia apenas um gasoduto Bolívia-Argentina. Hoje há seis conexões para o Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, alem do projeto conjunto Brasil-Argentina-Venezuela de um megagasoduto atravessando a Amazônia.

Os críticos deste projeto de iniciativa do presidente venezuelano, Hugo Chávez, alegam que o custo, US$ 30 bilhões, é muito elevado e há riscos ambientais graves. Seria apenas um projeto político. Oddone da costa lembra que quando Brasil e Bolívia decidiram fazer seu gasoduto, não havia gás nem demanda suficiente.

Com a crise energética, a expectativa de que a demanda por petróleo cresça mais rapidamente do que a oferta por causa do extraordinário crescimento da Ásia abre a possibilidade de que o megagasoduto tenha viabilidade econômica, disse Oddone.

Já Costa e Silva concluiu observando que “nada vai funcionar sem estabilidade politica na Bolívia”, o que depende do sucesso do governo Morales. Eleito no primeiro turno com maioria no Congresso, ele tem melhores condições, segundo o diplomata, para fazer um governo estável. Vai depender de seu relacionamento com os movimentos sociais que o levaram ao poder: “Houve uma opção clara pela volta do Estado na economia. Temos de esperar agora pelo início das negociações”.

2 comentários:

CFagundes disse...

Obrigado pelo curso intensivo de Bolívia.

"a eleição de Evo Morales é produto de uma crise econômica e social"

Será que essa crise é a única razão da eleição de Morales?
Não quero comparar, mas a voz de Abimael Gusmán também ecoou entre as frestas dos Andes.

Nelson Franco Jobim disse...

Abimael Guzmán, o Presidente Gonzalo, era o líder do grupo terrorista Sendero Luminoso, responsável por uma guerra civil que provocou 75 mil mortes. Morales lidera o Movimento ao Socialismo mas é um sindicalista, acostumado a lutas duríssimas mas realistas. O Sendero era um grupo maoísta polpotiano e o governo de Pol Pot (1975-78) matou milhões de pessoas no Camboja. Não é um exemplo para o futuro da América Latina